Aos que consideram PESSOA HUMANA um constrangedor pleonasmo, o Doutor informa que esta é uma expressão usada por um grande número de escritores e de entidades do mundo inteiro.
Um especialista em Conan Doyle explicou, certa feita, que a importância que a correspondência por escrito desempenha nas histórias de Sherlock Holmes só poderá ser bem avaliada se lembrarmos que na Londres vitoriana o correio fazia doze entregas por dia, com o intervalo de uma hora! Computando o tempo destinado à coleta e à distribuição, uma carta levava no máximo três horas para chegar ao destinatário, o que permitia a Holmes rabiscar pela manhã um bilhete apressado para Watson e receber a resposta quando se preparava para acender o tradicional cachimbo de depois do almoço. Com toda essa facilidade, era natural que as pessoas se carteassem intensamente, fazendo com a pena o que depois seria feito pelo telefone. Veio então a santa internet, e todos voltaram a escrever; o correio eletrônico, com sua rapidez de foguete, permite, num ritmo de bate lá, volta cá, um volume espantoso de produção escrita interpessoal (se o leitor computar o número de linhas que costuma escrever por dia, entenderá por que aumentou tanto o interesse por artigos e blogues dedicados a diferentes aspectos de nosso idioma).
Pois um jovem leitor (assim ao menos eu o imagino) escreveu para saber se na frase “todos os especialistas são unânimes” não haveria um erro brabo, um pleonasmo grosseiro como “subir para cima”. Em ritmo de pingue-pongue, respondi-lhe sumariamente que não era o caso; o falante tem uma tendência natural a reforçar os vocábulos cujo significado original “desbotou” com o tempo, isto é, deixou de ser percebido por sua comunidade lingüística — precisamente o que deveria estar acontecendo com o adjetivo unânime. Assim se explicaria, portanto, aquele reforço com o pronome todos.
Nem vinte minutos eram passados e lá veio ele de novo, fazendo-se de sonso, com um ás tirado da manga: pois não é que tinha esquecido de mencionar, na primeira mensagem, que a frase vinha de uma coluna escrita por mim e publicada aqui, no Sua Língua? “Pelo menos o senhor é coerente”, acrescentou, “mas ainda acho que juntar todos com unânimes é pleonasmo indesculpável”. Pronto, pensei. É daqueles que vêm pedir minha opinião só para ter a oportunidade de discordar — o que, convenhamos, já poderia ter anunciado logo de saída. Pois que seja: um rápido passeio pela internet (ela, de novo e sempre!) forneceu-me centenas de exemplos saídos da pena de juristas, teólogos, sociólogos, escritores e tutti quanti, mas, por brevidade, contentei-me em apresentar-lhe um exemplo de Júlio Dinis, em As Pupilas do Senhor Reitor (“Agora já todos foram unânimes“) e outro do próprio Machado de Assis, em A Pianista (“É essa pianista, cuja modéstia todos são unânimes em celebrar…”).
Ao que parece, os dois exemplos o convenceram: uma hora depois, o novo e-mail do Burro Falante (este é o seu pseudônimo; convenhamos que tem espírito!) que chegou continha apenas um polido agradecimento pela atenção que lhe dei e uma reclamação final, quase um resmungo: “Por que os escritores clássicos têm tanto prestígio e credibilidade para você, a ponto de considerá-los como referência do que é certo ou do que é errado? Só falta dizer que temos de escrever como eles!”. Respondi que não era isso — bem pelo contrário. As gramáticas tradicionais, é verdade, usavam os exemplos dos clássicos como modelos que deveriam ser seguidos; na visão moderna, contudo — outro grande ensinamento do meu mestre Celso Luft —, os exemplos dos bons escritores têm valor porque mostram as variadas possibilidades da língua que podemos usar, se quisermos. Ao lembrar que Machado escreveu “todos são unânimes”, não estou recomendando que o leitor faça como ele, mas apenas defendendo esta construção como uma forma também válida de se expressar. É simples assim: se o grande Machado, com sua extraordinária sensibilidade lingüística , sentiu-se confortável com ela, temos de incluí-la entre as escolhas possíveis do vasto repertório que é a língua portuguesa.
O mesmo vale, como já mencionei num texto sobre pleonasmos, para outras construções que os apressadinhos de hoje vivem a condenar injustamente: elo de união (Machado e Joaquim Nabuco); criar novos (Eça de Queirós, Alencar); exultar de felicidade (Machado); pequenos detalhes (Mário de Sá-Carneiro); regra geral (Vieira, Camilo); estrelas do céu (Eça, Rui e Machado); sorriso nos lábios (Eça, Rui e Camilo); recordar o passado (G. Dias e Camilo). Esses que só veem aqui erros a evitar demonstram a intolerância de quem leu muito menos do que devia, e essas lacunas na formação, esse desconhecimento do passado — como alertava o velho Câmara Cascudo, falando sobre os jovens folcloristas desinformados — faz tudo parecer novidade.
Mas voltemos ao exame da expressão que escolhi como título deste artigo: pessoa humana. Numa matéria especial sobre a linguagem de nossos candidatos, a revista Veja pediu a professores e gramáticos uma relação dos modismos e cacoetes mais frequentes no discurso político, analisando-os um a um de forma ponderada, sem aqueles esgares de cachorro louco que costumavam caracterizar os debates desse tipo. Com muito bom-senso, a reportagem procura desmascarar esses mitos modernos que brotam como ervas daninhas ali onde escasseia a chuva revigorante da tradição; entre outras coisas, defende a legitimidade do risco de vida, consagrado pelos escritores, e mostra que é Português do melhor quilate combinar a preposição com o artigo que acompanha o núcleo do sujeito (“na hora da onça beber água“, em vez do artificial “na hora de a onça beber água”). O único deslize dos autores da matéria foi, a meu ver, condenarem taxativamente a expressão pessoa humana, apresentando um argumento que lhes pareceu suficiente para fulminá-la: “Existirão por acaso pessoas suínas — ou asininas?”.
Não, é claro que não, seus engraçadinhos — mas existem as pessoas jurídicas, as pessoas físicas, as pessoas divinas, etc. Na obra de nossos escritores há dezenas de exemplos em que o adjetivo humano foi usado para se opor a outros tipos de pessoas. No séc. 16, Manuel Pires de Almeida compara, na obra de Camões, as pessoas deificadas com as pessoas humanas; Camilo Castelo Branco respeita a adoração de um jovem enamorado, para o qual a noiva é uma pessoa divina, prometendo que não vai “pô-la em confronto com os lapsos das pessoas humanas“; Rubião herda a fortuna de Quincas Borba com a condição de cuidar muito bem do cachorro — cuidar dele, no fundo, “como se cão não fosse, mas pessoa humana“; e Saramago, em A Caverna, afirma “que nem tudo se encontra resolvido na relação entre as pessoas humanas e as pessoas caninas“.
Estou muito mais inclinado a admitir que foi algum motivo sutil, e não um afrouxamento estilístico, que terá levado nossos escritores a empregarem também pessoa humana no sentido genérico. Em Machado: “os romancistas … se presumem grandes analistas da pessoa humana“; “cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana“. Em Lima Barreto: “estávamos diante da mais terrível associação de males que uma pessoa humana pode reunir”; “há um cristal de pureza inalterável como núcleo eterno da pessoa humana“. Em Rui Barbosa: “Aí não há senão a altitude da pessoa humana, do mérito individual na solitária sublimidade do seu poder”. Em Drummond: “na pessoa humana vamos redescobrir aquele lugar”. Em Nelson Rodrigues: “Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana“. O leitor vai concordar que quase todos esses exemplos ficariam capengas se retirássemos o adjetivo e deixássemos apenas pessoa.
Esta mesma sutileza deve ser a responsável pela presença de idêntica combinação em outros idiomas. No Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem, onde se lê, em vernáculo, “na dignidade e no valor da pessoa humana“, lê-se human person no Inglês, personne humaine no Francês, persona humana no Espanhol e persona umana no Italiano (que infelizmente desfigurou sua herança latina ao eliminar o H inicial…). Por que será que ela aparece também no texto das constituições, no título de milhares de livros filosóficos, jurídicos ou religiosos, nas mensagens do Vaticano, nos documentos da Unesco e da Onu? Não tenho certeza, mas suspeito que o fator determinante para o acréscimo do adjetivo limitador seja a elasticidade cada vez maior do conceito de pessoa. Os estudos sobre a inteligência e a psicologia dos golfinhos, por exemplo, levaram alguns cientistas a classificá-los como pessoas não-humanas, enquanto grupos modernos de filosofia e de ética começam a classificar os recém-nascidos, os doentes mentais e os anciãos desvalidos de humanos que não são pessoas — o que deixa claro que uma coisa não pressupõe necessariamente a outra.
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