Que língua a escola deve ensinar?

Os linguistas sabem que o Português é muito mais amplo do que a língua escrita culta que é ensinada na escola — mas a escola sabe, mais que os linguistas, que essa é a língua que ela deve ensinar.


Um grupo de estudantes de Letras veio me visitar: faziam um trabalho para a faculdade e queriam a minha opinião sobre o papel do professor de Português “neste novo milênio, frente às novas teorias lingüísticas e aos novos meios eletrônicos de comunicação”. Não pude deixar de sorrir diante de tanta novidade numa frase só; olhei-os com simpatia — todos vão ser meus colegas, em breve — e respondi que o nosso papel continua a ser o mesmo de sempre: transmitir ao aluno a língua da nossa cultura e ensiná-lo a se expressar em prosa articulada.

Talvez tenham ficado espantados com a resposta, mas eu não estranhei a pergunta deles. Sei que o avanço da Lingüística, com tudo o que nos trouxe de bom, provocou também essa curiosa insegurança da escola quanto aos objetivos do ensino do nosso idioma. No entanto, faço questão de repetir que esses objetivos não mudaram e não devem mudar, por mais que os argumentos em sentido contrário pareçam engenhosos. Um lingüista, por exemplo, convidava seus leitores a imaginar um documentário de TV em que o narrador informasse que a canção de acasalamento da baleia azul continha vários erros grosseiros, ou que os gritos dos chimpanzés da Malásia vinham degenerando progressivamente. Seria absurdo? Ora, se não podemos falar em erros da baleia azul, perguntava ele, triunfante, como podemos falar em erros na fala humana? Como pode a escola tentar impingir uma variedade do idioma, tachando as demais de inadequadas? — e por aí ia a valsa.

A este tipo de raciocínio engraçadinho, que obteve grande sucesso nos anos 70, contraponho uma verdade que todos nós conhecemos: os lingüistas sabem que nosso idioma é muito mais amplo do que a língua escrita culta que é ensinada na escola — mas a escola sabe, mais que os lingüistas, que essa é a língua que ela deve ensinar.

O que a escola faz, e tem a obrigação de fazer — porque só ela pode fazê-lo de maneira progressiva e sistemática — é ensinar o futuro cidadão a  se utilizar dessa forma  tão especial de língua que é a língua escrita culta, cujas potencialidades espantosas aparecem na obra de nossos grandes autores. Machado de Assis, Vieira, Eça de Queirós, Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, cada um à sua maneira, são ótimos exemplos. É nesta língua que se cria e organiza a maior parte de nosso pensamentos e sentimentos, seja escrevendo, seja falando (pode parecer paradoxal a inclusão da fala, mas não é; há muito se distingue a língua que o indivíduo fala antes do seu letramento e a língua que ele fala depois). Todas as demais variedades são respeitáveis como fenômeno cultural e antropológico, mas não é nelas que a escola deve concentrar seus esforços.

Nosso aluno espera que ensinemos a ele a usar essa língua que constitui a modalidade do Português que todas as pessoas articuladas aceitam como a mais efetiva para expressar seu pensamento. Dizendo de um jeito mais rude: se houvesse forma melhor, ela estaria sendo usada. Todas as sociedades reconhecem isso; o velho Bloomfield, um dos lingüistas “duros” do estruturalismo americano, ressaltou que a comunidade, em várias tribos de nativos por ele estudadas, sabia apontar muito bem aqueles que falavam melhor do que os outros. Na sua sabedoria, o público maciçamente tem repelido as tentativas desastradas de fazer a escola aceitar como válida toda e qualquer forma de expressão. Quem não lembra a triste moda dos anos pós-Woodstock, em que defendíamos com entusiasmo a valorização da linguagem do vileiro como algo digno de ser preservado? Hoje sabemos que nada mais era do que uma alegre fantasia da classe média acadêmica, que terminava cristalizando uma categoria de excluídos, contra a vontade de seus pobres falantes. “Não é para isso que a gente estuda”, dizem eles — e  chamá-los de conservadores é o mesmo que dizer, com arrogância, que nós é que sabemos o que é bom para a sua vida. Já vimos isso na política, em que alguns têm a petulância de dizer que o povo não soube escolher …

Agora, por que a prosa? Porque escrever prosa nos torna homens mais exatos, como percebeu Francis Bacon. Escrever é disciplinar o pensamento; o domínio da prosa impõe rigorosa disciplina à nossa mente. Ao escrever, vamos deixando uma trilha do nosso pensamento, permitindo que voltemos sobre nossos próprios passos para encontrar o ponto em que nos desviamos da rota certa e onde nos enganamos. Além disso, precisamos seguir uma série de convenções que permitam que as outras mentes acompanhem o caminho descrito pelo nosso raciocínio. Não vou exagerar, mas acredito que o pensamento articulado é impossível para uma pessoa que não consiga construir um texto coerente e também articulado — e não tenho certeza do que aqui é causa, o que é efeito. Uma escola que não ensine o aluno a escrever com clareza e coerência está comprometendo algo muito mais profundo que aquilo que os antigos chamavam de uma “boa redação”.

Muitos alegam que essas regras são mantidas apenas porque é assim se afirma o poder da elite, dividindo a população entre os que conseguem e os que não conseguem entendê-las. Em parte, é verdade: quem as domina consegue expressar-se  melhor e argumentar melhor, o que resulta inevitavelmente em maior poder sobre os outros. Mas não são regras estabelecidas por capricho ou por acaso; nasceram da experiência acumulada em milhares de tentativas de expressar-se articuladamente no Português, ao longo dos últimos oito ou nove séculos, num esforço gigantesco que produziu esse magnífico instrumento de expressão e de argumentação. Se essa língua é usada para dominar e submeter, pode, com muito mais razão, ser usada para libertar. Em nome da igualdade social, essa é a missão da escola; agora, como fazer isso, em escala universal e democrática, é uma questão que deve ser resolvida estrutural e politicamente pelos governos e pela sociedade, não pelos professores de Português.

[Artigo publicado na revista Arquipélago, do IEL-RS, em 2005].

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