“Os estrangeirismos são os judeus da linguagem”
Theodor Adorno – Minima Moralia
Quando vocês, caros amigos, estiverem lendo esta coluna, fiquem sabendo que a malparida lei contra estrangeirismos (aqui) finalmente foi vetada pelo governador Tarso Genro, que não parecia, desde o início, disposto a endossar este disparate legislativo. Ora, mesmo que o dragão tenha morrido sob o peso de seus próprios defeitos, vou manter minha promessa e mostrar por que considero autoritário este projeto, esperando que isso sirva de vacina para nos imunizar, por muito tempo, contra aventuras semelhantes.
Em primeiro lugar, todo purismo tem cunho fascista. Quando falam numa língua pura (quem conhece a história de qualquer língua ocidental sabe que isso é uma alucinação), eu saco logo o meu revólver – ou o talão de cheques (tanto faz, pois ambos vieram do Inglês, revolver e check). É assim que as coisas começam: apontar estrangeirismos, limpar, expurgar — tudo isso em nome de uma pureza lingüística; depois, vem a limpeza étnica; depois, a ideológica. Nós já vimos este filme.
A ideia de banir os elementos estrangeiros da linguagem sempre foi muito popular em regimes totalitários, tanto da direita quanto da esquerda. Estados fortes tentam regular até a maneira de seus súditos se expressarem. Na Itália de Mussolini, a Academia desencadeou uma campanha “purificadora” do italiano, publicando listas periódicas dos vocábulos que deveriam ser banidos. A Espanha franquista assistiu a movimento idêntico. Na França dos anos 90 (para minha decepção), surgiu a Lei Toubon, logo associada a Le Pen e à direita furiosa. Na Alemanha corre um movimento contra o que eles chamam exageradamente de Denglish (mistura de Deutsch com English), apoiada pelos velhos partidários do nacionalismo — e tanto o Irã de Ahmadinejad quanto a China do capitalismo sem sindicatos lançaram ofensivas semelhantes.
Em segundo lugar, ninguém tem o direito de se arvorar em juiz dos seus semelhantes. Muitas das pessoas com quem conversei, embora considerem natural que usemos vocábulos estrangeiros para suprir as lacunas do nosso léxico, condenam aqueles que os empregam por pura moda ou exibicionismo. “Mas o senhor não acha ridículo usarem sale em vez de liquidação?”, pergunta uma leitora, num tom que chega a sugerir que ela está perdendo a paciência comigo. Acho, madame — assim como acho ridículo organizar uma festa caríssima para comemorar o aniversário do cachorro ou escolher a data da cesariana para que o nenê nasça dentro do “signo certo”. Acho errado, ridículo e muito mais — mas os outros nada têm a ver com a minha opinião.
Falemos francamente: o alvo desta celeuma toda não é qualquer vocábulo vindo do exterior: os que vêm do Francês, do Espanhol, do Italiano, do Russo ou das línguas da Ásia não chamam atenção e não dão brotoeja. O que nos incomoda são os que vêm do Inglês. Falando ainda mais francamente, são os que representam a sufocante influência dos Estados Unidos nos mais ínfimos recônditos de nossa vida. Pois saiba, prezado leitor, que trocar um vocábulo inglês por seu equivalente nacional em nada vai reduzir o imperialismo cultural a que estamos submetidos. Chamar o Halloween de Festa das Bruxas (ou Bailanta do Bruxaredo, para quem prefere uma dicção mais gaudéria) não vai diminuir o mal-estar que sinto diante da adesão cada vez maior de nossas crianças a esta festa completamente exótica à nossa cultura, que nem ao menos tem a atenuante de incluir, entre suas figuras, o Saci, o Boitatá, o Curupira e a Mula-sem-Cabeça.
Por trás desta preocupação em banir os estrangeirismos encontramos o mesmo fundamento em que se baseiam os defensores do “politicamente correto”: a ingênua crença de que podemos mudar a realidade se mudarmos a linguagem — quando a experiência e a ciência nos ensinam que o vento sopra exatamente em sentido contrário. O certo é “Liberte sua mente, que o resto vem atrás (inclusive a linguagem)”, e não “Liberte sua linguagem, que a mente vem atrás” (não é por acaso que o lema daquela campanha anti-homofóbica dos EUA era “Free your mind and your ass will follow“, e não o contrário, como alguns marotos sugeriram — e só não traduzo porque pode haver crianças na sala).
Em outras palavras, esta lei, se fosse aplicada, não cumpriria o objetivo que orientou sua concepção. Que o vocabulário da informática venha todo do Inglês não é o verdadeiro problema, mas sim que toda informática nos torne dependentes da tecnologia americana — e trocar mouse por ratón, como fazem os argentinos, não é motivo para orgulho nacional, se continuarmos a utilizar este dipositivo para navegar nas ondas do Windows, da Microsoft Corporation.
Depois do Acordo:
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