1ª — Caro professor: a expressão a gente, tão comumente usada hoje em dia, trata-se de um terrível mau uso da língua ou é apenas uma cacofonia (pois dói no ouvido)? Grato.
[Rubens G. – Campinas]
Meu caro Rubens: mas que maneira de colocar a questão! Do jeito que escreveste, ou matas, ou enforcas! A Retórica alertava para esses falsos dilemas, que não deixam saída para o interlocutor: “tu ainda bates na tua avozinha, ou resolveste agora ter pena da pobre velhinha?” — nota que, seja qual for tua resposta, estarás admitindo uma atitude lamentável contra a terceira idade. A gente é um “terrível mau uso” ou “apenas uma cacofonia”? Sentiste a maldade? Acho que em parte é bom, em parte é ruim, Rubens. A força com que gente entrou no Português quotidiano parece revelar que temos necessidade de uma forma assim — um impessoal, como o on do Francês, para substituir o nós, que é muito mais particularizado. Nota que, do ponto de vista flexional, gente tem a vantagem de usar a 3ª pessoa do singular, a mais simples e menos marcada de todas: “a gente decidiu”, “a gente precisa entender“, etc. O problema que começa a surgir, no entanto, reside na escolha dos pronomes (pessoais e possessivos) que irão fazer companhia a gente, devido a seu emprego no lugar do nós: “a gente trouxe nossos ingressos”, “a gente precisa entender nosso pai” — aí sim, Rubens, exemplo de mau uso (mas não terrível…). Vamos ver como o sistema vai resolver essa; entender uma língua é, antes de mais nada, observar as tendências naturais que ela decide seguir. Abraço. Prof. Moreno
P.S.: Fica atento para um erro que começa a aparecer por aí: andam escrevendo “*Agente precisa tomar cuidado”, “*agente não sabia o que estava acontecendo”. Que tal?
2ª — Caro Professor Moreno: ficaria muito grato se o senhor esclarecesse quem pode fazer uso da silepse. Vou ser mais explícito: de acordo com o que vi nas gramáticas sobre silepse, poderíamos dizer “a gente vamos”, pois o verbo concordaria com o plural implícito no vocábulo “gente”. Seria silepse de número?
David A., de Maceió (AL
Meu caro David: QUEM pode usar a silepse? Quem quiser, ora. A língua é uma das poucas instâncias democráticas que temos. Se queres saber QUANDO, aí já é outro departamento. Mas, cuidado: as gramáticas não dizem que podemos usar “*a gente vamos”: isso é erro bravio, do mato cerrado. O que acontece com “gente” é que, às vezes, passamos para o seu conteúdo intrinsecamente plural: “A gente estava atravessando um momento muito difícil. Depois de três dias, decidimos recorrer ao senhor”. Nota que não se trata de “*a gente decidimos“. Estamos em outra oração, com outro verbo; houve a transição natural de “a gente” para “nós”. Há uma banda jovem (a que toca “Popozuda”…) que ridiculariza esse erro — aliás, numa bela batida funque: “A gente somos inútil!”. Abraço. Prof. Moreno