Prof. Moreno, sou aluna de Letras e, há algum tempo, um professor afirmou categoricamente para minha turma que a expressão que designa uma determinada década, como “anos 60”, por exemplo, deve ser pronunciada ou escrita por extenso no plural, ou seja, que o correto seria “anos sessentas”. Confesso que fiquei surpresa. Desde então tenho pesquisado o assunto, porém não encontrei ainda nenhuma linha a esse respeito. Por isso, peço sua ajuda no sentido de esclarecer minha dúvida, pois entendo que, nesse caso, o numeral já é plural e que, portanto, o acréscimo do S é incorreto. Grata pela atenção.”
Maria José — Resende – RJ
Minha cara Maria José: respondo à tua mensagem e, com ela, às de vários outros leitores. Sempre se disse, aqui e em Portugal, “anos quarenta“, “anos sessenta“. Todos éramos felizes e falávamos corretamente. No entanto, de alguns anos para cá, têm surgido estranhas vozes apregoando que o correto seria “anos quarentas“, “anos sessentas“. Quem são elas? Eu, que já as conheço muito bem, posso fazer-te um retrato falado: essas vozes provêm de pessoas de escassa formação em Letras (quando não em Jornalismo!), de nenhuma expressão na área acadêmica, que se metem a reformar o mundo da linguagem com um furor e um entusiasmo inversamente proporcionais ao seu conhecimento. Não conhecem Lingüística e raramente citam os bons gramáticos da gema, pois preferem citar-se entre si, dentro da mesma laia. Essas “autoridades” logo tratam de relacionar uma série de regras impressionantemente precisas, em geral reunidas em lotes de conta redonda (pois essa gente tem um verdadeiro fascínio por títulos como “Cem regras de…”, “As 1000 regras mais…”, “Os Dez Mandamentos da…”), e mandam bala no nosso pobre idioma. Seu tom é invariavelmente repressivo e onipotente (“não pode”, “é proibido”, “está errado”, “não admito”), mas as “regras” que formulam são absurdas e fantasiosas, apresentadas sem o raciocínio ou a pesquisa que as embasou. Quase nunca discutem, quase nunca tentam argumentar; evitam, assim, que venha à luz a fragilidade de seus conhecimentos. Num discurso vazio e autoritário, limitam-se a afirmar — o que, na cabeça de porongo deles, já é o suficiente.
Os poucos que vi tentando honestamente justificar esse achado dos tais “anos quarentas” basearam-se na conhecida possibilidade de substantivar os numerais (e, de resto, qualquer outra classe gramatical) no Português. O fato é conhecido: embora numerais como quatro, cinco, nove, oito sejam invariáveis por sua própria natureza, passam a flexionar-se quando se tornam substantivos, ao ocuparem a posição nuclear do sintagma. Em “quatro carros brancos”, o núcleo é o substantivo carros; quatro é apenas um numeral e, como tal, ocupa a posição periférica à esquerda. No entanto, em “todos os quatros do baralho”, é ele que ocupa a posição de núcleo (acompanhado devidamente do pronome todos, do artigo os e do adjunto adnominal do baralho). Você vai observar o mesmo fato em “preciso de dois oitos“, “a prova dos noves” — só que esse não é o caso de “anos sessenta“!
Em “anos sessenta“, o núcleo é anos, enquanto sessenta é um elemento periférico que não está em relação de concordância com o núcleo. Podemos dizer que os dois elementos estão numa relação de independência análoga à que têm entre si os termos de compostos sintáticos como manifestação-monstro ou menina-prodígio, que fazem o plural manifestações-monstro e meninas-prodígio (os traços de gênero e número não atravessam do núcleo para o periférico). Para que te sintas segura, coloca os “anos sessenta” junto com construções corriqueiras como “todos os dias trinta“, “nesta turma houve vários graus zero“, em que ninguém tentaria flexionar o numeral. Para os que gostam de estatística, fiz uma pesquisa rápida no Google e obtive 178.000 ocorrências de “anos sessenta” para apenas 800 (é isso mesmo; não é erro de digitação) ocorrências do temível “anos sessentas“. Não é argumento, mas certamente está sinalizando alguma coisa… Abraço. Prof. Moreno
P.S.: Acho que nunca vamos importar do Inglês aquela maneira lá deles de referir-se às décadas como os 60s, os 70s (“the sixties“, “the seventies)”) que os franceses já começam a usar. No entanto, se esse horror vier a ocorrer, então escreveremos e diremos, por extenso, “os oitentas”, “os setentas” — mas isso é coisa bem diferente.
Depois do Acordo: Lingüística > Linguística