Jamais devemos esquecer que as normas ortográficas foram (e ainda são) feitas por homens, mortais como nós, com momentos de brilhantismo e outros de absoluta estupidez. Nosso sistema ortográfico até que é muito razoável, se levarmos em conta o que significa regulamentar a grafia de uma gigantesca quantidade de fatos de linguagem; o que não podemos exigir dele é que seja perfeito e que dê conta de todas as situações possíveis que o uso nos faz descobrir, como aconteceu no caso do hífen.
O emprego deste infeliz “tracinho”, de utilidade discutível, foi definido pelos elaboradores do Acordo de 1943 e aperfeiçoado pelo Acordo de 1990. É bem assim que funciona no Brasil: decide-se num gabinete qual a melhor grafia para as palavras, publica-se no Diário Oficial da União (não estou brincando!), dá-se um prazo para sua utilização compulsória, emitem-se pareceres, baixam-se portarias, etcétera e tal; isso é suficiente para despertar no brasileiro comum aquele respeito pela leizinha, aquele amor ao carimbo, aquele prazer bem ibérico pelo regulamentozinho chinfrim de cartório. E ai de quem lhe diga que a regra pode estar equivocada, ou incompleta, ou incongruente: vai olhá-lo como a um sacrílego que tentasse emendar os Dez Mandamentos. Felizmente esta coluna é lida por pessoas que têm miolo e que já devem ter percebido que a regra do hífen não é uma lei interna do idioma, mas uma simples disposição concebida por pessoas que talvez não tenham imaginado todas as suas conseqüências, como veremos.
Pelas novas regras, este prefixo deve ser hifenizado antes de H e de I, o que nos leva a escrever anti-Holanda, anti-Israel, como anti-hemorrágico e anti-islâmico. Até aqui, tudo bem. E o resto? Vamos deixar de escrever anti-Cuba, anti-Afeganistão, anti-Rússia e anti-França, para escrever anticuba, antiafeganistão, antirrússia (credo!) e antifrança? Em vez de anti-EUA, como escrevo, vou escrever antieua? Quem sabe antissarkozy (tipo antissemita, antissísmico), em vez de anti-Sarkozy? Enlouqueceram?
É evidente que todos sentimos o hífen aqui como indispensável; na verdade, este prefixo, cada vez mais em moda (tem gente que consegue ser anti-tudo!), sugere que se é “contra tudo aquilo que estiver do lado direito do hífen”. Um crítico que não gosta do Cinema Novo é anti-Cinema Novo, e não anticinema novo, como gostariam os idiotas da objetividade (o prefixo estaria se opondo a “cinema”). Há os anti-Lula, os anti-Fernando Henrique, os anti-privatização da Petrobrás, os anti-Sarney, os anti-stalinistas
Este é um belo exemplo de como os fatos concretos atropelam as leis feitas pelo homem; lá pelos anos 40, ninguém poderia prever a intensidade e a variedade do emprego de anti no início do século 21 — e a regra não estava preparada para isso. O novo Acordo (1990) já deveria ter tomado consciência dessa nova realidade; deveria, mas não tomou. Isso tudo sem falar em outro uso moderno para anti-, mais profundo, em que ele exprime uma posição de “negação” conceptual do que vem depois. O anti futebol (ou seria antifutebol, ou anti-futebol?) não é contra o futebol, assim como o anti cinema não é contra o cinema, mas um tipo de futebol ou cinema (ambos muito chatos) que se opõe a tudo aquilo que tradicionalmente se conhece por cinema ou futebol. E aí? Esse anti está contido naquela regrinha, é um novo prefixo ou é um daqueles elementos que se independentizou, como súper ou máxi? Esta é uma questão que só o uso poderá decidir.
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