Ele: “Professor Moreno, gostaria de saber se é correto o nome do doce arroz-de-leite , sinônimo de arroz-doce. Minha mulher insiste que está errado. Está grafia consta no Aurélio, enquanto a que ela diz ser a correta, arroz-com-leite, não consta. Por favor, esclareça-nos. Muito obrigado.” [Ernesto – Porto Alegre]
Ela: “Caro professor Moreno, há um debate entre mim e meu marido a respeito do nosso famoso doce regional, o arroz-doce, que já está virando polêmica familiar. Eu sou do interior e ele de Porto Alegre. Quando começamos a namorar, achavam estranho, na casa dele, eu falar arroz-com-leite, pois todos falavam arroz-de-leite. Desde então o debate vem crescendo e está se tornando cada vez mais acirrado. Eu argumento que de leite não se faz arroz. Pode-se fazer um doce de leite, uma rapadura de leite, mas nunca arroz. Eles argumentam que é o nome do doce e que, por isso, pode. Tive a idéia de entrar em contato quando li sua explicação sobre déjà vu — o que não é torna-se aceito e tido como verdadeiro e correto. Será que teremos também o *cunós ou *cunóis tido como correto algum dia? Um abraço.”
Marta — Porto Alegre
Meus caros Ernesto e Marta: façam as pazes, porque os dois têm razão. O tradicional doce português, o arroz-doce, pode ser chamado tanto de arroz-de-leite quanto de arroz-com-leite. Não tentem encontrar uma ordem onde ela inexiste: infelizmente o uso da preposição na denominação dos pratos de nossa cozinha não segue a estrutura-padrão de nossos sintagmas. Entendo a posição da Marta: o arroz-doce é feito “com” leite, e não “de” leite. No entanto, uma pesquisa detalhada em livros de culinária consagrados me fez suspeitar que não é tão simples assim. Encontrei feijão de azeite, feijão de alho, cocada de ovos, arroz de polvo, arroz de marisco, arroz de frango, arroz de alho, arroz de coco (Luís Câmara Cascudo), arroz de pequi, arroz de leite (Gilberto Freyre) — em todos eles, aposto que a Marta substituiria o “de” pelo “com”.
Em alguns cardápios, inclusive, vi distinguirem arroz-com-leite, prato salgado em que o arroz é cozido no leite e não na água, do arroz-de-leite, incluído entre as sobremesas. Em outros, no entanto, o próprio arroz-de-leite aparece como salgado; um típico restaurante do Rio Grande do Norte oferece à gula dos fregueses vários pratos da cozinha regional do Seridó, entre eles carne-de-sol com arroz-de-leite, rabada de boi, guiné torrado, buchada, entre outros. Deu para perceber? Neste caso, não existe um padrão sedimentado quanto ao emprego do “com” ou do “de”.
Agora, Marta, senti uma ponta de ironia quando perguntas se um dia teremos como correto o famigerado *cunós ou, pior ainda, o *cunóis — assim como se eu tivesse insinuado que o errado passará a ser certo, já que a maioria fala assim. Nada disso; o caso do arroz-de-leite é bem diferente. Não estamos falando em substituir uma forma do Português culto (conosco) por uma do Português falado substandard (*cunóis) — a distância é grande demais para ser transposta—, e sim usar uma preposição em vez de outra (fato comum e freqüente em nosso idioma). Querem um conselho? Depois de ler este artigo, comemorem em torno de um belo prato de arroz-de-leite (ou com leite) morninho, com uma canelinha por cima, o fato de ambos terem razão. E voltem sempre! Um abraço para os dois. Prof. Moreno
Depois do Acordo: idéia > idéia
freqüente > frequente