Exmo. Senhor Professor Moreno, foi com curiosidade que naveguei no seu site e constatei que a língua portuguesa de que fala com tanto orgulho e empenho não passa de uma de uma alteração, com erros gramaticais graves, do bom e velho Português. Posso-lhe citar alguns exemplos inclusivamente pronunciados por si, Sr. Professor, pois foi com espanto que quando li uma das sua respostas esclarecedoras li a seguinte frase: “…é porque as pessoas à sua volta não têm estudo”. “Estudo”, Sr. Professor?! Penso que a palavra “estudo” que refere é a conjugação do verbo estudar na primeira pessoa do singular – Eu estudo. Na minha humilde ignorância penso que a frase está mal construída, talvez devesse ser assim: “…é porque as pessoas à sua volta não têm formação”; em Portugal nunca se diria “estudo”, quando muito “estudos, mas mesmo assim só o diriam aquelas que não tem formação académica.
Poder-lhe-ia citar inúmeros erros não só de gramática, de pronúncia como também o uso de variadíssimas palavras que não existem no dicionário português, que são frequentemente banalizados em livros traduzidos por brasileiros, séries televisivas, etc. Talvez o exemplo mais escandaloso tenha sido a recente adaptação do romance de Eça de Queiroz Os Maias para uma telenovela realizada pela Globo, na qual o texto de Eça foi adaptado à boa maneira brasileira. Como deve saber o Sr. Professor, Eça é talvez dos escritores mais emblemáticos da língua portuguesa. Talvez tenham os brasileiros a mesma dificuldade de decifrar o texto de Eça, como os portugueses têm de decifrar algumas palavras do dialecto brasileiro — como, por exemplo, “caminhão”, que agora com a força do hábito já todos sabemos que quer dizer camião em português.
Não pretendo que se ofenda com as minhas afirmações, só gostaria de saber por que insistem os brasileiros em afirmar que a língua que falam é o Português. Deixemo-nos de acordos ortográficos e assumamos as nossas diferenças que felizmente são muitas. Não tenho o pretensiosismo de afirmar que domino inteiramente o Português e por isso mesmo recorri ao seu site com o intuito de aprender a falar e a escrever melhor, mas confesso-lhe com pesar que recuso-me a adoptar as novas regras brasileiras. A minha língua é a portuguesa e sempre será. Com os melhores cumprimentos.
Ana Mariano Portugal
Minha prezada Ana: curioso fiquei eu ao encontrar, em carne e osso, uma defensora de uma idéia que foi abandonada há mais de cem anos! Quando nos tornamos independentes politicamente de Portugal, em 1822, nossa incipente literatura, seguindo um impulso natural de libertação, abraçou, até com certo exagero, a temática e o linguajar típicos do novo país. Como era de esperar, vários autores portugueses se insurgiram contra esta prática, alegando que a língua pertencia a Portugal e que nós a recebêramos apenas como empréstimo, não nos cabendo, por isso mesmo, alterar ou modificar o idioma em que brilhara Camões. Duplamente enganados estavam eles, como o tempo demonstrou. Primeiro, porque nem eles mesmos, no século XIX, conservavam a língua usada por Camões; quatro séculos de evolução inexorável haviam alterado — e bastante! — a sintaxe do Português (sem mencionar, é evidente, o vocabulário). Segundo, porque a língua que usamos aqui, deste lado do Atlântico, ou aí, na velha Europa, ou em ambos os lados da África, é lingüisticamente a mesma: o bom e velho Português. A conjugação dos verbos é a mesma, a flexão dos nomes é a mesma, o sistema de subordinação é exatamente o mesmo, a regência dos nomes e dos verbos é a mesma. Há diferenças, é claro, como também há diferenças entre a língua usada em Pernambuco e a que usamos aqui no extremo sul do país, mas são totalmente absorvíveis pelo gigantesco sistema que é uma língua humana. No mundo acadêmico, minha cara Ana, nos estudos mais altos, nos píncaros mais elevados do saber, no mundo iluminado dos doutores, sempre se fala em PE (Português Europeu) e PB (Português Brasileiro), da mesma maneira que se fala de Inglês Britânico e Inglês Americano, entre outras variedades. A língua em que me escreveste e esta em que te respondo é exatamente a mesma, com leves diferenças de estilo e de grafia. Digo-te que não tens razão, assim como já disse, para outros leitores, que não têm razão aqueles que insistem em defender a existência de uma “língua brasileira”.
Estranhas que eu use estudo? Pois não deverias. O termo entrou no Português lá pelo século XII (nós ainda nem tínhamos sido descobertos!) e figura em todos os bons dicionários que conheço. Para não mencionar apenas o Aurélio e o Houaiss, que devem também ser conhecidos aí em terras lusas, fui conferir nos dicionários editados em Portugal. No dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, de 2001, a par de “estudos”, encontro também “estudo — 1. Aplicação intelectual metódica para adquir novas noções ou ampliar ou enriquecer os conhecimentos que já possuem; acto ou efeito de estudar. […] 8. Trabalho para adquirir instrução: era muito pouco aplicado no estudo”. Mais ou menos a mesma coisa no Cândido Figueiredo, no Morais (última edição), no Caldas Aulete (primeira edição). Se as pessoas com formação acadêmica aí na terrinha não se utilizam desse significado de “estudo”, estão exercendo o direito sagrado dos falantes, que podem escolher dentre aqueles recursos que a língua generosamente lhes oferece. Eu, no entanto, estou acostumado a fazê-lo, principalmente porque um autor seiscentista brasileiro que talvez tu conheças, o nosso querido Padre Antônio Vieira, usava-o regaladamente em seus sermões e na sua correspondência. Para nossa ilustração, reproduzo a seguir uns poucos exemplos:
Finalmente, a investigação deste tão apetecido segredo foi o estudo e disputa dos maiores e mais sinalados filósofos, de Sócrates, de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e do eloqüente Túlio, nos livros mais sublimes e doutos de todas suas obras”; “Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a quem é servido”; “Desta maneira, no sentido em que o digo vinham a inferir e alcançar pelo estudo e especulação natural e própria o que Deus lhes não tinha manifestado pela revelação sobrenatural e divina”; “E ponho aqui (tanto de melhor vontade) esta minha advertência, em que não acabei de cair de todo, senão depois de muitos anos de estudo e lição dos mesmos Padres”. Pois bem, minha cara, se era moeda boa para Vieira, confesso humildemente que continua a sê-lo para mim. E olha que não estou mostrando os exemplos que abundam em Machado de Assis!
Quanto à adaptação do Eça de Queirós (que aqui escrevemos com S final, como ensinam todos os críticos e filólogos portugueses que conheço), tratava-se de um espetáculo para a TV, que é, no Brasil, um meio de comunicação de massas, bem ao contrário de Portugal, onde deve ser a diversão preferida da elite. Por isso foram feitas adaptações para tornar o texto do Eça inteligível para esse gigantesco público que, durante algumas semanas, encantou-se com Os Maias, assim como já se havia encantado com O Primo Basílio, alguns anos antes. Não era um Eça em estado puro, mas havia ali Eça suficiente para levar milhares desses espectadores a procurar o livro para conhecer o texto genuíno. Para mim, que sou professor, isso já valeria uma estátua para os produtores da telenovela.
Finalmente, não sei a que “novas regras regras brasileiras” tu te referes. Nenhum dos dois países, ao que eu saiba, está tentando impingir suas regras ao outro. Sempre vivemos em absoluta tolerância e respeito às diferenças e preferências nacionais; se existe algum esforço no sentido de uma unificação, limita-se à área da grafia, com o que, aliás, sempre fui contra. Nós usamos o trema, vocês não usam; nós acentuamos os ditongos abertos /éi/, /éu/ e /ói/, que o sistema fonológico do PE (o Português falado na Europa) não distingue dos fechados. Vocês têm grafia e pronúncia diferentes para a 1ª pessoa do plural do pretérito perfeito (amámos, encontrámos), coisa que aqui não usamos. Vocês dizem e escrevem acto, facto, onde escrevemos e dizemos ato e fato — e por aí vai a valsa! Nós preferimos usar os pronomes átonos antes do verbo, vocês o usam depois; nós só admitimos o si e o consigo reflexivos, enquanto aí (como se vê na tua cartinha) eles podem ser empregados com relação ao interlocutor. Não me estendo mais porque essas diferenças já foram estudadas e relacionadas em boas gramáticas; quero apenas que percebas que são diferenças mínimas, comparadas à grande quantidade de semelhanças.
Por essas e por outras, minha cara Ana, faço minhas as palavras da tradicional canção de Gershwin: “Let’s call the whole thing off” — o que, em vernáculo, significa algo assim como “vamos deixar como está”. Abraço. Prof. Moreno
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