Caro Professor: acabo de ler um artigo que afirma que “Machado de Assis tinha caligrafia ilegível“. Pelo que entendo, caligrafia é a escrita bem feita, com letras de forma regular, portanto, legível. Quem escreve de forma ilegível não tem caligrafia (os médicos, por exemplo). Assim, o texto correto seria “Machado de Assis não tinha caligrafia”. Estou correto?
Valmir C. — Salvador
Meu caro Valmir: não, não estás correto; estás tentando aplicar princípios da lógica quotidiana a algo muito maior do que ela, que é uma língua natural, como o Português. Tens razão ao dizer que caligrafia quer dizer, originariamente, “escrita bela”. É esse também o significado que temos em mente quando falamos que “é preciso reintroduzir a prática da caligrafia na escola”; é por isso que existem, até hoje, os calígrafos profissionais, que escrevem convites e diplomas com letra muito bonita. No entanto, o termo “caligrafia” passou a significar também o simples “feitio de letra“; por isso, ninguém estranha se falarmos em “melhorar nossa caligrafia” e na “caligrafia ilegível de Machado de Assis”; o vocábulo grafia, apenas, não serviria aqui, por significar a combinação de letras e sinais, não a forma dessas letras.
Essa tendência de ampliar o campo de significação de um vocábulo é intrínseca a qualquer idioma; já foi dito que os dicionários engrossam mais por novos significados atribuídos a vocábulos já existentes do que pela criação de novas palavras — e não adianta querer cristalizar, imobilizar o vocábulo no seu sentido primitivo, etimológico. Acho perfeitamente normal falar em erros de ortografia, por exemplo — e não vá um boi-corneta me dizer que existe aí uma contradição com a formação inicial da palavra, já que ortos, em Grego, significa “correta”. As palavras, Valmir, não significam hoje o que significavam outrora; essa é a lei do idioma. Embarcar era entrar num barco; hoje, vale para trem, ônibus, metrô, avião e quejandos. O alpinismo era praticado nos Alpes; hoje, em qualquer montanha do mundo. Escrevi sobre isso, com mais detalhes, no artigo Atravessando o Canal da Manga. Abraço. Prof. Moreno