caxangá

Às vezes os poemas ou as canções usam vocábulos que não existem, mas foram inventados por amor à rima ou à métrica. Esse parece ser o caso de CAXANGÁ e da TONGA DE MIRONGA DO CABULETÊ.

Um leitor que mora no outro lado do Atântico pede uma informação que a mim também anda fazendo falta. Diz ele, na sua saborosa sintaxe lusitana: “Vai perdoar a minha ignorância, mas gostava que o Professor me dissesse o que significa a palavra caxangá na cantiga de roda Escravos de Jó, que aprendi no curso de teatro que frequento”. Pois não há o que perdoar, amigo, pois vieste bater à porta de alguém que também não sabe. Há muito ando no rastro deste vocábulo, mas sempre acabo entrando em algum beco sem saída…

Segundo consta no Houaiss, o caxangá é simplesmente um dos nomes para o nosso tradicional siri, vizinho do peixe e primo da lagosta; secundariamente, também pode designar uma espécie de gorro de marinheiro. Só isso. Como estás a ver, nenhum dos dois se encaixa nos escravos de Jó que jogavam caxangá. Para piorar, a etimologia fornecida no final do verbete é digna de manicômio: o termo viria do Tupi caá-çangá, que significa “mata extensa”! Antes que tu, tão distante deste nosso exótico mundo tropical, te ponhas a indagar o que tem a ver com isso o siri, ou o gorro, ou os escravos de Jó, aviso-te que a informação provém do confusíssimo Vocabulário Tupi-Guarani-Português, de Silveira Bueno, autor que às vezes sai com uma ideia que parece tirada da unha do pé. Ele defende, por exemplo, que o brasileiríssimo ““, que usamos para concordar, não é a forma reduzida de está, mas sim um advérbio de origem indígena! Acho que mais não preciso dizer.

Aproveitando que o Google faz uma varredura em mais de trinta milhões de páginas em Português, procurei caxangá, caxengá, caxingá, (depois experimentei todas elas, trocando o X por CH), e não encontrei nada que fizesse sentido como um tipo de jogo. Um desses anônimos da internet levantou, acho eu, um ponto interessante: trata-se de escravos de — portanto, de um personagem da Bíblia, exótico ao Brasil e às etnias indígenas e africanas que formaram nosso povo, o que pode ser um indício de que devemos buscar a origem dessa cantiga em outras línguas ou culturas.

Além disso, é impossível explicar como é que um jogo chamado caxangá só aqui seja mencionado, nunca tendo sido descrito pelos antropólogos e etnólogos que estudaram e estudam as nossas tradições populares. Talvez a investigação possa progredir se imaginarmos que caxangá, aqui, é siri mesmo, e que o vocábulo alterado pela tradição tenha sido exatamente o jogavam. Pode ser que a canção usasse um outro verbo qualquer (juntavam, etc.), que terminou sendo substituido por jogar; pode ser também que o jogavam, aqui, não se refira a “praticar um jogo”, mas sim a “lançar” — os escravos lançavam os caxangás no cesto, ou na testa, sei lá.

Se queres saber, isso me parece uma daquelas letras que não tem propriamente sentido, misturando vocábulos reais com vocábulos inventados ou modificados apenas pelo amor da sonoridade e da rima. Foi o que aconteceu com “a tonga da mironga do cabuletê“, que não significa nada em língua alguma — ao menos era isso o que Vinícius informava a quem vinha lhe perguntar. Como estávamos em plena da ditadura, no entanto, muitos preferiram acreditar que o poeta tivesse escondido, por trás dessas palavras africanas, uma ofensa ao governo militar. Na internet, onde tudo é possível, corre a lenda (discretamente estimulada pelo parceiro sobrevivente do poeta) de que a tradução seria algo como “o cabelo do c* da mãe”, dito em nagô!

É claro que, no contexto, a “tonga da mironga do cabuletê” não é coisa boa, não. A letra termina com os versos “Vou lhe rogar uma praga / Eu vou é mandar você/ Pra tonga da mironga do cabuletê” — mas temos de convir que qualquer expressão colocada ali, naquele lugar, teria uma inegável conotação pejorativa. Lembro que nos tempos de ginásio costumávamos usar a expressão “vai pra planfa que te lamblanfa”, nas situações em que era impossível empregar o genuíno “puta que pariu” — e tenho certeza de que os leitores devem conhecer várias outras expressões como essa, que não significam nada, especificamente, mas dizem tudo. A “tonga da mironga” deve ser algo similar.

Assim mesmo, fui conferir no indispensável Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, a melhor obra que temos sobre africanismos em nosso idioma. Lá encontrei: (1) tonga (do Quicongo), “força, poder”; (2) mironga (do Quimbundo), “mistério, segredo”; (3) cabuletê (de origem incerta), “indivíduo desprezível, vagabundo”. Como vês, são vocábulos que existem, mas provenientes de línguas diferentes, com significados que não têm relação alguma com a música (muito menos com a fantasiosa versão de “cabeludos (literalmente) palavrões em nagô”). Vinícius, com o ouvido que só os poetas têm, simplesmente os escolheu por sua sonoridade e combinou-os numa expressão sem valor semântico, mas de alto poder sugestivo.