Quando você escreve, leitor, você é um AFLITO ou um DESPREOCUPADO? Estes usam o idioma com a feliz inocência de quem caminha sem olhar onde pisa; aqueles estão atentos a cada letra, a cada palavra que escrevem.
Diga lá, leitor, sem rodeios: quando tem de escrever alguma coisa, você se alinha entre os despreocupados ou entre os aflitos? A classificação pode parecer irônica, mas nem por isso é menos exata. Enquanto os primeiros usam o idioma com a feliz inocência de quem caminha sem olhar por onde pisa, os outros ― entre os quais me incluo ― estão atentos a cada passo que precisam dar. Preocupação inútil, frescura acadêmica? Os aflitos acham que não; é muito mais uma questão de capricho pessoal, tão importante para nós quanto lavar o rosto, pentear o cabelo e escovar os dentes.
Digo isso porque o David Coimbra, um amigo tão aflito quanto eu, na sua coluna desta terça, aqui na ZH, depois de expor suas íntimas incertezas sobre a grafia da palavra xucro e sobre a origem da enigmática cedilha, faz uma eloquente confissão: “Escrevo todos os dias, quase que o dia inteiro; quando não escrevo, leio. E, ainda assim, as dúvidas me angustiam. Como queria ser igual ao Professor Moreno…”. Por que dizes isso, David? Julgas que assim terminariam tuas dúvidas? Ledo engano, meu caro. Elas me aparecem no café, no almoço e no jantar, e, sem exagero, até no sono já vieram me assombrar; a sorte é que aprendi com mestre Luft a estabelecer com elas uma convivência não só pacífica, como também divertida e enriquecedora. Algumas vão me acompanhar a vida toda, insolúveis, e mesmo as que parecem resolvidas podem voltar a produzir chama alta se algum vento novo soprar sobre a sua brasa.
O adjetivo xucro (ou chucro) é uma dessas dúvidas que ficarão sem resposta. Como dizes no teu artigo, este vocábulo vem do Quíchua ― língua principal do Império Inca, assim como também vieram lhama, mate, condor, coca (da cocaína), cancha e tambo. Os que a escrevem com X aplicam-lhe o princípio que rege a grafia de todos os vocábulos oriundos de línguas que não tinham escrita (xaxim, orixá, xiru, etc.). Ocorre, no entanto, que essa palavra, ao chegar aqui, já tinha passado pelo Espanhol platino, onde foi transliterada com CH (chúcaro), exatamente como ocorreu com charque. E aí? Escolhe. Segue o rumo do teu próprio coração ― e tranqüilo, porque os bons dicionários (e a Academia Brasileira de Letras) registram ambas as variantes.
Quanto à cedilha, ela é um sinal extra que o Português, o Francês e o Catalão colocam embaixo do C para formar o cê-cedilha ou cê cedilhado (se te serve de consolo, no Romeno e no Turco ela é usada sob outras letras, além do C!). Aquele “rabinho”, como chamam as crianças, é na verdade um Z minúsculo; o nome vem de cedilla, que no Espanhol antigo significava “pequeno Z“. Na nossa ortografia, o cê-cedilha é usado para representar o som de /s/ entre duas vogais, papel que disputa, com larguíssima vantagem, com o S duplo; sem ele, seria difícil manter a uniformidade de grafia de algumas famílias de palavras, como doce e adoçar, ou laço, enlace e enlaçar, pois nos permite atribuir à letra C dois sons diferentes.
Depois do Acordo: tranqüilo > tranquilo
Ilustração de Edu Oliveira – jornal Zero Hora]
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