Caro Professor: desde já quero agradecer-lhe pela oportunidade de consultar este interessante e tão útil sítio. Meus parabéns! Sou brasileira e moro em Coimbra há cerca de 10 anos. Gostaria de perguntar-lhe qual a maneira correcta de escrever (e pronunciar) a palavra clitóris. Será CLÍtoris ou cliTÓris? Muito grata.” Sandra L. — Portugal
Minha cara Sandra: nem sempre temos certeza quanto à correta localização da sílaba tônica de um determinado vocábulo científico. Enquanto os vocábulos usuais são pronunciados sem a menor hesitação, os de uso mais restrito podem representar dificuldades embaraçosas. Como se deve pronunciar Nobel? É hieroglifo ou hieróglifo? É lípase ou lipase? Como determinar a sílaba que deve receber o acento tônico nesses vocábulos? Em suma, como definir a prosódia dessas palavras de pronúncia hesitante?
Não é por acaso que estes casos de indecisão são particularmente mais freqüentes em vocábulos eruditos de origem grega e latina. Embora haja certas regras gerais para a passagem do Latim para o Português e para a transliteração do Grego, tantos são os fatores intervenientes (históricos, fonéticos, ortográficos, etc.) que se torna impossível determinar, de antemão, qual a pronúncia a ser adotada em cada caso. Um dos grandes especialistas no ramo, o erudito José Inez Louro, da cidade do Porto, em seu esgotado O Grego Aplicado à Linguagem Científica, chega a dizer que “só por um acaso a sílaba tônica grega continua a ser tônica no Latim ou no Português”. Além disso, a comunidade científica não é uma só, unânime e homogênea. Dentro dela também existe uma rica variedade lingüística, tornando impossível o consenso sobre a forma de pronunciar (ou mesmo grafar) certos vocábulos. Em diversas situações, vais ser forçada a optar por uma das versões de uma determinada palavra, baseando-te, para isso, na tua formação cultural, no teu convencimento íntimo, no exemplo dos especialistas que respeitas.
Queres ter uma visão do inferno? Compara dicionários. Se tomarmos o indispensável Aurélio (2ª edição, é claro), o dicionário de Antenor Nascentes (um dos poucos a registrar a pronúncia em todos os verbetes) e o clássico dicionário de Ramiz Galvão (Vocabulário etymologico, ortographico e prosodico das palavras portuguezas derivadas da Língua Grega), veremos que Aurélio registra acetonúria (com a variante acetonuria), Nascentes indica acetonúria e R. Galvão registra acetonuria. Que tal? Aurélio e Nascentes concordam em esfíncter e eczema, mas R. Galvão finca pé em esfincter (rimando com mulher) e éczema! E clitóris? Como se diz o nome desse ponto ainda tão pouco explorado da anatomia feminina? Apesar de ter sido descoberto no Renascimento por Realdo Colombo (“uma coisinha tão bonita e com tanta utilidade” — De re anatomica, 1559), a sua pronúncia até hoje ainda traz dúvidas para os estudiosos.
A maioria dos falantes diz clitóris, e esta pronúncia é confirmada por toda a tradição de dicionaristas de peso. Assim registram, no século XIX, Morais, Lacerda e Aulete; no século passado, Aurélio, Nascentes e o Dicionário Michaelis. A única voz destoante entre as autoridades é Ramiz Galvão, que argumenta que a quantidade grega mandaria dizer clítoris; nosso sábio da Belle Epoque (seu dicionário é de 1909), contudo, não insiste nessa prosódia, porque ele prefere mesmo é a forma clitóride, que ele classifica como um “substantivo feminino”! “A” clitóride! Assim já é ser extravagante demais …
E aí vem a nota desagradável: eu citei acima o Aurélio da 2ª edição, quando o autor ainda estava vivo. Sua lição é inequívoca: registra apenas clitóris, sem variantes ou hesitações. Qual não é a minha surpresa quando abro o Aurélio XXI (que recebeu vários acréscimos e emendas de uma tal “equipe”… será que ouço o mestre Aurélio rangendo os dentes em seu túmulo?) e me deparo com um verdadeiro qüiproquó: clitóris é dado como mera variante de clítoris, que remete à famigerada clitóride, com direito a verbete e tudo! Esta é mais uma que o Aurélio XXI me apronta; estou colecionando os casos e vou aproveitá-los para mostrar, em um próximo artigo, como uma nova edição de um dicionário não é necessariamente melhor que a anterior. Abraço. Prof. Moreno.
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