coco

Professor Moreno, desde que aprendi a escrever me ensinaram que deveria escrever côco com acento circunflexo no primeiro O, para diferenciar de cocô. Porém, tem gente que diz que eu estou errada ao acentuar essa palavra, dizendo que já não se usa mais. Eles estão tentando derrubar algo que já virou uma convicção que trago desde o Ensino Fundamental! Afinal, como é que se escreve o fruto do coqueiro? Elisa M. F.

Minha cara Elisa: a maneira como escrevemos as palavras do Português foi fixada no Acordo Ortográfico de 1943, com as alterações introduzidas por este Novo Acordo de 2009. O texto destes acordos é a base daquele sistema que o brasileiro médio chama respeitosamente de “ortografia oficial”, atribuindo-lhe uma infalibilidade maior do que a do Papa. Os estudiosos sabem que ele não é tão oficial nem tão infalível assim; prefiro, contudo, discutir isso noutra ocasião, que não sou homem de mexer em abelheiro e sair correndo.

Quando o Acordo de 1943 entrou em vigor, muitos dos brasileiros que já tinham sido alfabetizados ficaram com uma sensação natural de insegurança, uma vez que perceberam que o sistema que tinham estudado na escola havia sido substituído por outro. Quem escrevia theatro, commercio e pharmacia, por exemplo, teve de aprender as novas formas teatro, comércio e farmácia. Se as pessoas têm dificuldade em assimilar uma nova moeda (cruzeiros, cruzados, reais, etc.), podes imaginar o quanto mais vão ter, tratando-se de algo muito mais complexo, como é um sistema ortográfico…

Pois bem, o Acordo de 1943 instituiu o equivocado acento diferencial para desmanchar aqueles pares de vocábulos homógrafos (que se escrevem da mesma forma) cuja diferença, na pronúncia, repousa na oposição [E/O fechado x E/O aberto]. A partir daquele ano, desapareceu essa homografia, porque passou a escrever-se gêlo, almôço, pôrto, sêde, diferentemente de gelo, almoço, porto e sede. Aqui entra o côco, acentuado para distinguir de coco (do verbo cocar; nunca usei, mas existe). Isso nada tem a ver com o acento de cocô (oxítona terminada em O, como vovô); aliás, se não existisse o vocábulo cocô (os nenês portugueses dizem cocó…), assim mesmo o Acordo de 1943 manteria o acento de côco, indicando que o O aqui é fechado.

Acontece que o acento diferencial, na prática, revelou-se inútil e extremamente perturbador do sistema ortográfico — a tal ponto que a única alteração introduzida, de 1943 até 2009 (friso: foi a única vez que se alterou a regra ortográfica desde 1943, embora muitos de meus leitores jurariam que houve inúmeras mudanças, deste então!) — repito, a única alteração foi feita em 1971, eliminando-se esse malfadado acentinho, voltando os vocábulos a ser homógrafos: “eu estou com SEDE” e “leve isso à SEDE do sindicato”; “está faltando GELO” e “eu GELO a cerveja com o extintor” (é técnica de emergência…); “na hora do ALMOÇO” e “eu ALMOÇO sempre com meus filhos” (pelos exemplos que dou, podes ver que o contexto normalmente se encarrega de esclarecer qual dos dois vocábulos está sendo empregado). Foi aqui que o coco perdeu o acento.

Ora, embora mínima, a Reforma de 1971 era também uma mudança, e ocasionou os problemas já conhecidos: quem já tinha introjetado o sistema de 1943 passou a sentir-se inseguro, não sabendo exatamente até que ponto ele tinha sido modificado. Imagina como se sente um bravo brasileiro de 72 anos (nascido em 1930, portanto): aprendeu a escrever lá por 1940; em 1943, tudo mudou; vamos supor que, com esforço e persistência, ele tenha conseguido atualizar-se, só para ver, estarrecido, nova mudança em 1971! Vou dar uma de Sherlock Holmes: se tua professorinha ensinava côco com acento, deduzo que entraste na escola depois de 1943 e que a deixaste antes da reforma de 1971 (sem ter sido apresentada ao novo coco desacentuado). Não estou certo?

Para teu consolo, fica sabendo que não és a única a errar: milhares de pessoas, alfabetizadas antes de 1971, continuam a usar o circunflexo nesses vocábulos. Desafio alguém a encontrar um depósito de gelo sem acento, ou algum produto alimentício feito com coco sem acento — são verdadeiras raridades! Por essas e por outras, minha cara Elisa, é que sinto vontade de esganar qualquer um desses inconseqüentes que defendem a nova reforma ortográfica! Eles realmente não sabem o que fazem; só alguém completamente divorciado da realidade de nosso pobre país pode pensar em tamanha asneira! Abraço. Prof. Moreno

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