As leitoras Diva Lea, de Assis (SP), e Maria Angélica, de Porto Velho (RO), estranham que ainda seja considerado erro deixar no singular o verbo de vende-se casas. Elas — como todo falante brasileiro — não sentem casas como o sujeito dessa construção, nem vêem aí uma equivalência com casas são vendidas. Em qualquer cidade do Brasil, em qualquer estrada, nas páginas dos classificados, nos anúncios da lista telefônica — para onde quer que você olhe, vai enxergar exemplos do famigerado “erro” da passiva sintética. Sem dar a mínima para o que dizem os gramáticos mais tradicionais, as pessoas povoam a paisagem brasileira de grandes cartazes e belos letreiros com aluga-se casas, conserta-se fogões, faz-se carretos, aceita-se encomendas, traçados em todas as cores e tamanhos. Por alguma misteriosa razão, os vendedores de terrenos recusam-se a fazer o verbo vender concordar com os terrenos que eles vendem; em vez de vendem-se, teimam em escrever “vende-se terrenos“, assim mesmo, com o verbo no singular. Alguns começam a se perguntar se a voz passiva sintética está ameaçada; eu vejo, simplesmente, que a questão já foi decidida há muito tempo: a passiva sintética deixou de ser uma estrutura viva de nossa língua. Ficou apenas a lenda, contada ainda respeitosamente junto ao fogo dos acampamentos gramaticais mais conservadores. E por que morreu? Porque o que ela teria a oferecer não interessa mais aos falantes, que vêem a voz passiva analítica — a verdadeira — atingir as mesmas finalidades, com muito mais vantagem.
Vamos ser sinceros: quando eu escrevo vende-se este terreno, pretendo significar que “este terreno é vendido” (ou “está sendo vendido”)? Claro que não. É o interesse de não ser identificado (ou, às vezes, um simples pudor) que me leva a não escrever vendo este terreno (o que seria claro, direto e honesto). Ao optar pelo vende-se, quero anunciar algo assim como “alguém vende este terreno”. Em outras palavras, estou tentando usar, com um verbo transitivo direto, aquela mesma construção que empregamos com os verbos transitivos indiretos quando queremos indeterminar o sujeito (“precisa-se de operários”, “necessita-se de costureiras”). Como explicava Celso Pedro Luft, usamos o SE sempre que não nos interessa especificar o agente. Em “aluga-se uma casa” e “vende-se este terreno” não interessa saber quem vende ou aluga; interessa a ação e seu objeto. Por isso mesmo, quando o próprio objeto está diante dos olhos do leitor, basta pregar nele uma tabuleta com o verbo, e pronto: aluga-se, vende-se. Essa é a realidade; nossa insistência em manter o verbo no singular, a despeito do plural que vem depois, comprova que ninguém sente casas ou terrenos como sujeito dessas frases.
Há muito os lingüistas brasileiros já sabem que a passiva sintética é pura ficção, mas este é um daqueles tantos itens em que fica evidenciado o imenso (e estranhíssimo!) fosso que separa, de um lado, o que hoje conhecemos sobre a nossa língua, e do outro, o que a disciplina gramatical (sustentada pela maior parte dos livros didáticos) ainda difunde através do ensino. Neste caso, em particular, há um apego ainda mais inexplicável a uma dessas falsas verdades, já que muitos gramáticos “velhos”, dos bons (entre outros, o grande Said Ali — em 1908! — e João Ribeiro) já expressaram sua convicção de que esta estrutura estava morta. Acontece que não são os verdadeiros especialistas quem detém o poder da opinião gramatical no Brasil; este vem sendo exercido, desde o Império, por indivíduos dotados geralmente de pouca cultura lingüística e magros dotes intelectuais, que ocupam as posições de destaque na imprensa e nas editoras, impondo ao sistema escolar uma língua aprisionada numa estreita moldura teórica — o que é, paradoxalmente, a verdadeira razão de seu sucesso, pois isso dá ao usuário aquela sensação de segurança que o espírito redutor sempre oferece. Basta comparar a atitude aberta, indagativa, de velhos sábios como Said Ali ou Mário Barreto, com a posição autoritária e estreita da grande maioria dos autores que escrevem hoje, século XXI, sobre Língua Portuguesa, aqui nesta Pindorama. O próprio Said Ali já definia, curto e seco, o problema desses bacharéis gramatiqueiros, com sua mirrada análise lingüística: eles “pecam por excesso de raciocínio dentro de limitado círculo de idéias“. Criaram um estreito arcabouço lógico para a língua (que, como sabemos, não é lógica) e nele basearam toda uma “disciplina gramatical” que, como não poderia deixar de ser, não passa de uma entediante arquitetura fantasiosa, sem o imprescindível apoio da realidade.
É só nesse mundo fictício que a passiva sintética sobrevive. É um mecanismo perverso: mesmo aqueles que já estão convencidos de que ela é uma estrutura artificial não ousam ignorá-la, pelo medo de ser avaliados desfavoravelmente por seus leitores, que provavelmente acreditam nessa versão “oficial” do Português. Eu, por exemplo (que não acredito na sintética), vou escrever “vende-se casas”? Pois jacaré escreveu? Nem eu! Esse é um dos maiores fatores dessa sobrevivência virtual desta construção obsoleta: ninguém quer se arriscar a ser o primeiro. Isso é mais que humano (além do fato de que, vamos ser sinceros, não se trata de algo tão importante assim que valha o incômodo…). E ela segue vivendo da ilusão dos concursos, dos vestibulares, das petições, dos textos formais e conservadores. O que apresento a seguir é uma suma da concepção tradicional sobre a voz passiva sintética; embora eu dela discorde, friso que ela deve ser conhecida por quem quer que precise demonstrar domínio da Norma Culta Escrita.
1 – Concordância com a passiva sintética (visão tradicional)
Ao lidar com a voz passiva sintética (também chamada de pronominal, por causa do SE, que é um pronome apassivador), nosso maior problema é reconhecer o sujeito da frase. Em estruturas do tipo aceitam-se cheques ou compram-se garrafas, o elemento que vem posposto ao verbo é considerado o sujeito (o paciente da ação). Ocorre, no entanto, que a passiva sintética não é sentida como voz passiva pela maioria dos falantes, os quais, vendo em cheques e garrafas um simples objeto direto, deixam de concordar o verbo com eles. Nasce aqui o que um antigo gramático chamava de “erro da tabuleta”: *aceita-se cheques, *compra-se garrafas, *vende-se terrenos, *aluga-se barcos.
Como já disse acima, não vou discutir, aqui, a real existência da passiva sintética; contento-me em explicar como é que a doutrina gramatical escolar a descreve. Não esqueça de que ela é ainda encarada como um dos traços que caracterizam o uso culto formal, e você pode ter certeza de que ela estará presente nas questões de vestibulares e concursos. É necessário, portanto, que você saiba identificá-la, fazendo em seguida a competente concordância.
Para quem tem uma formação mínima em sintaxe, não é tão difícil reconhecê-la: verbos TRANSITIVOS DIRETOS seguidos de SE (não reflexivo) constituem casos inequívocos dessa estrutura. Se ainda assim persistirem dúvidas, lembre que a frase na passiva sintética tem forma equivalente na passiva analítica:
Aceitam-se cheques — Cheques são aceitos.
Compram-se garrafas — Garrafas são compradas.
Se o verbo for transitivo indireto, é evidente que não pode haver passiva — tanto a sintética quanto a analítica. A construção com VERBO TRANSITIVO INDIRETO+SE é uma das formas do sujeito indeterminado no Português, ficando o verbo sempre na 3ª pessoa do singular:
Precisa-se de serventes.
Falava-se dos últimos acontecimentos.
Como serventes e últimos acontecimentos têm a função de objetos indiretos, o fato de estarem no plural não afeta o verbo, que continua imóvel no singular. Aqui muitas vezes ocorre a hipercorreção, aquele curioso erro invertido: assim como o caipira da anedota, muitas vezes advertido a não dizer fia e paia em vez de filha e palha, termina caprichando num *”as arelhas da pralha”, assim também falantes que se preocupam demais em errar a concordância com a passiva terminam por flexionar erroneamente essas estruturas, apesar do verbo ser transitivo indireto:
*Precisam-se de serventes (em vez de “precisa-se”).
*Falavam-se dos últimos acontecimentos (em vez de “falava-se”).
Para ter certeza de que não vai cometer este erro, você precisa identificar a regência do verbo; se for transitivo indireto, certamente não se tratará de caso de voz passiva. A mensagem por trás disso tudo, porém, é trágica: ninguém será capaz de lidar com essa estrutura se não for capaz de fazer todas as distinções sintáticas necessárias; nada mais natural, portanto, que o uso da sintética tenha ficado reduzido à escrita de usuários cultos e extremamente cautelosos.
2 – Aumenta a preocupação: as locuções verbais
Quando o verbo principal de uma locução verbal é transitivo direto, ocorrerá normalmente a voz passiva, flexionando-se (como é característico das locuções) o verbo auxiliar:
(ativa) O rei tinha autorizado as núpcias do poeta.
(analít.) As núpcias do poeta tinham sido autorizadas pelo rei.
(ativa) A miopia pode estar prejudicando este garoto.
(analít.) Este garoto pode estar sendo prejudicado pela miopia.
(analít.) Essas terras tinham sido compradas.
(sintét.) Tinham-se comprado estas terras.
(analít.) As condições do tratado devem ser respeitadas.
(sintét.) Devem-se respeitar as condições do tratado.
Nessas construções de passiva sintética com auxiliar, mais difícil ainda se torna reconhecer o sujeito posposto:
*Tinha-se comprado estas terras (em vez de “tinham-se”).
*Deve-se respeitar as condições do tratado. (em vez de “devem-se”)
Aqui, no entanto, há um caveat: existem vários auxiliares que impedem a transformação passiva (analítica ou sintética). Os gramáticos velhos os denominam de auxiliares volitivos — os que indicam vontade ou intenção, como QUERER, DESEJAR, ODIAR, e os que indicam tentativa ou esforço, como BUSCAR, PRETENDER, OUSAR, etc.
A frase “O homem tenta desvendar os mistérios da Natureza” não admite a passiva *”Os mistérios da Natureza tentam ser desvendados pelo homem”, da mesma forma que “Eu quero convidar Fulana” não corresponde a “Fulana quer ser convidada por mim”. O mesmo vai acontecer com a passiva sintética: numa frase como “Pretende-se importar os componentes”, o auxiliar volitivo deixa claro que componentes não pode ser o sujeito de “pretender”. O que temos aqui, na verdade, é um SUJEITO ORACIONAL — o sujeito das frases abaixo é a oração subjetiva entre colchetes—, e o verbo, conseqüentemente, fica na 3ª pessoa do singular:
Pretende-se [importar os componentes].
Busca-se [eliminar as diferenças].
Depois do Acordo: vêem, lingüista, lingüística, idéia e conseqüentemente passam a veem, linguista, linguística, ideia e consequentemente.