No dicionário Silveira Bueno as palavras desperceber e desaperceber aparecem como inobservar e desprover, respectivamente. Curiosamente, no Aurélio a palavra desaperceber aparece como sinônima de desperceber. Isso gerou uma grande polêmica entre mim, que sou administradora, e meu namorado publicitário. Por favor, esclareçam minha dúvida porque não deram a mínima atenção em outro site. Vocês são minha última opção internética.Atenciosamente.
Beatriz K. R.
Minha cara Beatriz: tua pergunta não deixa bem claro quem defendia o quê; isso pouco importa, entretanto, como verás ao final deste artigo. Para começar, ressalto que esses dois vocábulos são antônimos de outros já existentes, e que foram formados pelo habitual acréscimo do prefixo des-; não podemos buscar suas diferenças, portanto, sem que se volte ao estágio primitivo dessas palavras, isto é, aos verbos perceber e aperceber.
Perceber é velho conhecido nosso, e integra o vocabulário usual de qualquer brasileiro. Ao lado do significado comum de “notar, dar-se conta, compreender, entender” (“agora percebo o engano”; “ele percebeu as intenções do oponente”; “não percebo o que ele diz”), indica também “receber, auferir” (ordenados, rendas, lucros, vantagens).
Já não tão conhecido é aperceber; eu diria até que seu uso é muito raro no Português moderno. Significa “aparelhar, preparar; abastecer, fornecer; acautelar-se”. Morais (cito a edição de 1813) menciona “apercebido de armas, munições, gente” (provido); “os portugueses, sempre apercebidos, vigiando-se dos mouros” (acautelados). Registra também o significado de “dispor-se de modo conveniente para fazer ou sofrer alguma coisa: apercebeu-se para a morte”. Muito adequadamente, apercebimento significava tanto “preparativos” quanto “munições de boca e guerra”. As cartas de apercebimento eram avisos que os reis faziam aos senhores para se aprestarem com suas gentes e armas de guerra.
Nada mais natural, por isso, que os respectivos antônimos guardassem a mesma diferença. Desapercebido é o que não está apercebido, isto é, não está preparado, não está prevenido, não está aparelhado, nem acautelado. Encontro, no Morais, “desapercebidos de pólvora, armas e navios”; “enganaram-se os entendimentos desapercebidos das pessoas simples”. Despercebido, por outro lado, significa aquilo que não se percebeu, que não se sentiu, viu ou ouviu”: “o gesto não passou despercebido dos que assistiam à cena”; “foi uma picada de inseto leve, quase despercebida“.
Assim escreveram nossos bons escritores. Em Eça, o pecaminoso padre Amaro esgueirava-se com sua namorada, “despercebidos da Totó”, velha doente e entrevada. Machado fala de uma obra que “passou despercebida no meio da indiferença geral”. Euclides da Cunha descreve uma manobra dos jagunços, em Canudos, “um movimento contornante despercebido“, que pegou o exército de surpresa. Já o mesmo Machado, numa crônica em que descreve as risonhas batalhas entre os fãs das cantoras líricas do Rio de Janeiro, diz que eram “batalhas campais, com tropas frescas, apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até estalinhos”. Euclides, por sua vez, descreve agora a visão distante de “fulgores vivos de armas cintilantes, como se em rápidas manobras forças numerosas ao longe se apercebessem para o combate”, ou o estado lastimável do comandante, “sem carretas para o transporte de munições, desapercebido dos mais elementares recursos”.
Pronto, Beatriz! Pão, pão; queijo, queijo? Está tudo esclarecido? Assim decidiram os gramáticos tradicionais, entregando-se, à sua tarefa ensandecida de tentar imobilizar a Língua Portuguesa, que só pôde, ao que parece, evoluir até o dia em que as referidas sumidades nasceram… Baseados nos fatos que descrevi, passaram a exigir a manutenção da rígida diferença; desta forma, dizem eles, um gesto jamais poderia passar desapercebido, como se ouve por aí, porque seria o mesmo que dizer que ele passou “desprovido, desacautelado, desprevenido, desaparelhado”. Ledo engano! A linguagem costumeira veio perturbar esse quadro em que os dois campos estavam geometricamente traçados.
As duas formas, como era inevitável, começaram a ser confundidas, principalmente (se não exclusivamente) no sentido de “ser visto, ser notado, ser sentido”, que é o mais importante. Nada de novo, aqui: afinal, são dois verbos (e respectivos derivados) extremanente parecidos, que só se distinguem por um “a” inicial (perceber x aperceber), um fonema que, nesta posição, tem muito pouca personalidade (lembro as formas variantes alevantar:levantar, amostrar:mostrar, etc., tão numerosas na história da língua). E não é confusão nova, contemporânea do Português desleixado do rádio e da televisão: no Morais (repito: a edição é de 1813), já um vocábulo está invadindo a seara do outro. Ali se vê “perceber-se: aparelhar-se”; “percebido: acautelado, atentado nas coisas que alguém há de fazer”; “percebimento: o ato de aperceber, ou aperceber-se, aparelhar-se”. Despercebimento é definido como “desaparelho, falta de preparos”. Em todos esses exemplos, era de se esperar que Morais usasse desaperceber-se,desapercebido, desapercebimento. Euclides da Cunha, do fim do séc. XIX, também já demonstra hesitação, mas em sentido oposto: usa “apercebiam o assovio” (em lugar de percebiam); falando da ignorância geral dos praças do exército, diz que a soldadesca era “inapta ao apercebimento da lei física que explicava [tais fatos] ” (em lugar de percebimento ou percepção). Era como se as duas formas, em luta, estivessem disputando, num cabo-de-guerra vocabular, qual delas ficaria com tudo.
Ao que parece, desapercebido está vencendo, hoje, por larga margem; em algumas décadas, ele vai ficar sozinho no terreiro, triunfante. Um dicionário limitado como o do Silveira Bueno trata a língua como uma coisa acabada, de limites e contornos bem definidos; um dicionário bom como o Aurélio sabe que não pode interferir, onipotentemente, nos fatos da língua viva: cabe apenas registrá-los, e é por isso que ele diz que os dois vocábulos são usados indiferentemente. O Houaiss, o melhor de todos, ainda dá uma palmada nos velhos gramáticos empíricos: “os parônimos desapercebido e despercebido foram objeto de censura purista, acoimados de falsa sinonímia [no sentido de “não ser notado, não ser percebido”]… no entanto, ante o emprego desses dois vocábulos como sinônimos por autores de grande expressão, quer no séc. XIX, quer no início do séc. XX, a rejeição faz-se inaceitável”.
Como eu já disse em outras ocasiões, repetindo meu mestre Celso Pedro Luft: usar um vocábulo pelo outro, eu não faço; mantenho sempre aquela distinção inicial descrita acima; quando me perguntam, aconselho também a mantê-la, porque tenho aquele sentimento incontrolável de que a perda de uma distinção é sempre um empobrecimento do idioma. Mas, e os outros com isso? Portanto, Beatriz, posso afirmar que vocês dois tinham razão — e eu nem sei qual o ponto de vista que cada um defendia! Abraço. Prof. Moreno