dublês

Prezado Doutor: li que o esgoto da chuva é chamado de esgoto pluvial por se tratar de um “dublê”; procurei este vocábulo no Aurélio e no Houaiss, mas não encontrei nenhum significado que fizesse sentido. Genésio W. — Salvador

Meu caro Genésio: realmente, este vocábulo não se encontra registrado em nossos dicionários, apesar de ter sido muito usado pelos filólogos e estudiosos de Gramática Histórica, na forma francesa de doublet; hoje o mais comum é encontrá-lo substituído por “forma divergente”. Os “dublês”, ou formas divergentes, são dois vocábulos do Português que têm a mesma origem latina (ou, mais raramente, grega), mas que entraram na língua por caminhos diferentes: um deles seguiu a evolução fonética normal, enquanto o outro foi tomado de empréstimo diretamente do Latim. Assim, selo e sigilo são “dublês”, provenientes do mesmo vocábulo latino, sigillu; enquanto a evolução produziu selo, os humanistas do Renascimento foram buscar, diretamente do dicionário, a forma sigilo.

Esta dupla influência latina foi muito importante para a ampliação do léxico das Línguas Românicas. Uma base de Latim Vulgar entrou nas regiões conquistadas por Roma e ali evoluiu, misturando-se às línguas locais. Dessa mistura originaram-se o Português e o Espanhol, na Península Ibérica; o Francês, ao norte dos Pireneus; o Italiano, na Península Itálica; etc. As palavras latinas foram sofrendo o lento trabalho dos séculos, evoluindo para formas foneticamente diferenciadas para cada língua. Por exemplo, o homo latino produziu homem (Port.), homme (Fr.), hombre (Esp.) e uomo (It.). Este vocabulário inicial era predominantemente concreto, ligado à vida e à realidade quotidiana; nossos antepassados dos séculos XI, XII ou XIII não sentiam as limitações desse vocabulário evoluído pela simples razão de que toda a prosa técnica, todo o ensaio, todo o trabalho acadêmico era redigido (como, aliás, em toda a Europa) em Latim Literário. No entanto, à medida que aumentava a tendência a usar o próprio vernáculo também para esses textos (a partir do séc. XIV), os escritores perceberam a dificuldade de se expressar com a pequena quantidade de verbos, adjetivos e substantivos abstratos. Como tinham consciência de que o Português era filho do Latim, pensaram que nada mais natural seria do que recorrer mais uma vez aos depósitos da língua-mãe — e assim foi feito. Centenas de vocábulos foram colhidos diretamente do dicionário latino, criando-se assim essas duplas de irmãs em que uma delas, a forma evoluída, tem as marcas dos séculos, enquanto a outra, a forma reconstituída, é fresca como uma recém-nascida (e, por isso mesmo, muito mais parecida com a forma primitiva):

Isso explica, Genésio, por que todos nós escutamos, enquanto o médico ausculta, por que uma dor no olho nos leva ao oculista e por que a água da chuva escoa pelo esgoto pluvial. Além disso, suspeitamos que o fato do lucro ser irmão de sangue do logro não deve ser mera coincidência. Abraço. Prof. Moreno