Acho estranho o hábito que as pessoas têm de usar duas negativas juntas: “eu não quero nada“, “eu não sou de nada“, “não pedi nada para ninguém”, etc. Apesar de autodidata, acho muito esquisito (ou, como diriam outros, esdrúxulo) falar ou escrever dessa maneira; a frase, dita ou escrita dessa maneira, parece perder o seu sentido negativo e ganhar sentido afirmativo. Quem diz “eu não quero nada“, alguma coisa está querendo. Gostaria que o professor me desse uma resposta decisiva sobre este assunto. Muito obrigado! José B. A. da Silva— Cruzeiro (SP)
Meu caro José: Em primeiro lugar, ninguém pode dar respostas decisivas sobre questões de linguagem; como na Medicina ou na Biologia, as respostas sempre refletem nosso atual estágio de conhecimento. Na Ciência, como tu bem sabes, o hoje certamente deverá ser suplantado amanhã. O que eu faço é fornecer a meus leitores o que me parece, no momento, ser a orientação melhor e mais sensata.
Em segundo lugar, não existe nada, em Português, que vede a dupla negação (percebeste o não... nada?). Isso até pode valer para certos ramos da da Lógica formal, onde duas negativas levam a uma afirmativa (como na Matemática, onde menos com menos dá mais). Embora a gramática padrão do Inglês não aceite a dupla negação, a maioria das línguas humanas (que vão muito, mas muito além da Lógica Formal) utilizam tranqüilamente essa construção, multiplicando, na mesma frase, vocábulos negativos que se reforçam uns aos outros; “os falantes espalham uma fina camada de coloração negativa sobre a frase inteira, em vez de concentrá-la num único lugar”, como diz o lingüista dinamarquês Otto Jespersen.
Vais encontrar construções como “Não devo nada a ninguém”, “Não quero saber de nada“, “Nunca vi nada parecido”, e assim por diante, em todos os nossos bons escritores, inclusive no maior de todos eles, o incomparável Machado. Nos mais antigos, deparamos com formas mais radicais ainda: por volta de 1500, Gil Vicente escrevia “Nem tu não hás de vir cá”; “A ninguém não me descubro”; “Nem de pão não nos fartamos”.
Muitas são as situações em que empregamos instintivamente duas ou mais palavras com carga negativa. Para usarmos nenhum, por exemplo, é indispensável que a frase inclua antes um não: embora na posição de sujeito possamos encontrar o pronome nenhum sem o não anterior (“Nenhum jogador quis falar”), nas demais posições sintáticas, contudo, a correlação “não… nenhum” é praticamente obrigatória: “Esta geladeira não é nenhuma Bastemp”; “Não encontrei nenhum defeito”; etc. Além disso, deves estar familiarizado com frases do tipo “aquilo não vale nada, não“, com esse não adicional que costumamos acrescentar ao final de uma negativa enfática. E não te esqueças: no quotidiano, no calor da hora, quando tivermos de negar alguma coisa muito importante mesmo, vamos usar todas as palavras negativas que conseguirmos enfiar numa frase, como ouvi um dia, por cima do muro, um vizinho meu gritar para a mulher: “Já te disse que não tenho nadica de nada a ver com Marina nenhuma!”. Abraço. Moreno
Depois do Acordo:
tranqüilamente > tranquilamente
lingüista > linguista