Prezado Professor: estamos estudando, com as crianças do Ensino Fundamental, a influência africana no vocabulário do Português. Na pesquisa que nossa equipe realizou para preparar as aulas, no entanto, surgiu uma dúvida quanto à palavra figa, que uns dizem estar ligada às religiões afro-brasileiras, enquanto outros dizem ser vocábulo europeu. Por favor, esclareça esta dúvida, porque já tínhamos até planejado uma atividade em que as crianças iam construir figas com papel machê.
Jurema S. (professora) — Curitiba
Prezada Jurema: a figa realmente é um dos talismãs preferidos pelos seguidores das religiões afro-brasileiras, mas a Antropologia nos mostra que ela já era conhecida na pré-história européia. O vocábulo figa, por sua vez, vem do Latim fica, e aparece também no Francês e no Espanhol (figue e higa, respectivamente); não se trata, portanto, de uma contribuição africana ao nosso idioma, mas sei que autores como Nei Lopes, cujo Novo Dicionário Banto do Brasil já foi mencionado várias vezes aqui, apontam a existência da forma fingo, “amuleto”, numa das línguas bantas. Ora, ele mesmo, com sua intuição, fornece a chave para o mistério, ao fechar o seu verbete com uma pergunta: “Seria um portuguesismo?”. Vou tentar explicar o que ele quis dizer com isso.
Como deves lembrar, os portugueses exploraram a costa da África, dos dois lados do continente, antes de descobrir o Brasil. Aliás, como conta nossa história oficial, Pedro Álvares Cabral veio dar às nossas praias por um acidente de navegação, quando se afastou demais das calmarias reinantes no litoral africano. Quando os primeiros escravos foram trazidos para cá, possivelmente muitas palavras portuguesas já faziam parte do léxico das regiões em que os nossos antepassados se estabeleceram para dedicar-se ao tráfico negreiro — assim como aconteceu na Ásia, em que os povos do litoral da Índia, da Malásia, da China e do Japão, ao negociarem com os lusitanos, terminaram absorvendo vários vocábulos da nossa língua (dá uma olhada em japonesismos e arigatô vem de obrigado?). Além disso, com o desenvolvimento do comércio de escravos, estabeleceu-se através do Atlântico uma verdadeira rede de influências lingüísticas e culturais que viajavam em mão-dupla, da África para o Brasil e vice-versa — o que explica a pergunta de Nei Lopes: o fingo que aparece no Suaíle pode ser influência do Português sobre o idioma africano, e não o contrário; daí a sua justificada cautela.
Esta prudência é exatamente o que faltou à maior parte dos estudos sobre os africanismos no Português do Brasil, que invariavelmente tendiam para os extremos: ou limitavam essa influência ao vocabulário específico dos cultos religiosos e à culinária correspondente (entre centenas de outros, exu, bará, egum, orixá, ilê; mungunzá, efó, dendê, vatapá, axoxô, xinxim, acaçá), ou caíam no exagero oposto, atribuindo à África vocábulos de origem européia, ameríndia ou oriental (bugiganga, cachaça, cutucar, fulo, bengala, tarrafa, minhoca, pindaíba).
Não pediste, mas vou dar-te um conselho: para mostrar às crianças a presença do elemento africano em nossa cultura, acho que pouca ênfase deve ser dada à terminologia específica dos ritos africanos, pois são palavras que, em geral, não fazem parte do léxico corrente do brasileiro, ficando restritas aos fiéis dessas religiões — assim como amicto, casula, galheta, manutérgio, oblata e pátena, palavras relativas à missa, só circulam entre os (bons) católicos. Trabalhar com este tipo de vocabulário daria, a meu ver, um indesejável caráter exótico à contribuição africana, reforçando a visão de que o negro seria o “outro”, o estranho, o não-brasileiro — com todas as implicações racistas que nós tão bem já conhecemos.
Parece-me muito mais produtivo fixar-se naqueles vocábulos que fazem parte do nosso quotidiano afetivo e familiar, que podem muito melhor testemunhar o quanto carregamos na mente (e no sangue) a nossa herança africana: bamba, caçula, cacunda, cafuné, calombo, camundongo, carimbo, catimba, dengue, farofa, inhame, macaco, mamona, marimbondo, miçanga, molambo, moleque, mondongo, quindim, quitanda, quitute, senzala, sunga, tanga, além do especialíssimo samba e da insubstituível bunda, que o Português Europeu raramente usa.
Por último, uma observação reservada, aqui entre adultos: embora a atividade programada com a figa em papel machê fique prejudicada, dada a origem européia do termo, não custa lembrar que ela, além de talismã contra o mau-olhado, sempre teve um evidente conteúdo fálico, em que o polegar representa o membro masculino entre os lábios da vulva feminina… É claro que as crianças não precisam saber disso! Abraço. Prof. Moreno
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