“Caro Professor: minha filha prestou concurso há alguns dias e, na prova de Português, deparou-se com uma figura totalmente desconhecida: pronome endofórico. Telefonou-me, na certeza de que eu poderia apresentar a solução. Pesquisei em diversas gramáticas e dicionários, mas não encontrei nada que me esclarecesse. Como sou leitora assídua do Sua Língua e voraz devoradora de todos os esclarecimentos do Doutor, eis-me aqui solicitando alguma informação sobre esse tal de endofórico. Por oportuno, gostaria de dizer da felicidade de poder contar com este precioso site”. Lucilene L. — Rio de Janeiro
Prezada Lucilene: tu não és a primeira pessoa que fala dessa famigerada questão que apareceu num famigerado concurso. É melhor que eu explique com cuidado, porque não é coisa muito simples, não. Vou fazer o possível para deixar tudo bem claro.
Em todas as línguas existem determinadas palavras (os pronomes, os advérbios de lugar, etc.) que não têm um significado próprio; nós vamos interpretá-las caso a caso, atribuindo-lhes o mesmo valor semântico da parte da frase que estão representando. O pronome pessoal ele, por exemplo, é um vocábulo de significado praticamente “vazio”; no entanto, na seqüência “Um cavaleiro mascarado invadiu o estúdio. Ele estava armado e queria dar uma entrevista”, este pronome é interpretado como “um cavaleiro mascarado”. Esta relação que existe entre o pronome e o sintagma que ele representa é chamada de endofórica (formado pelo Grego endos,”interno, dentro de”, e phoréo, “levar”), porque é uma relação estabelecida entre dois elementos internos do próprio texto. A endófora pode ser de dois tipos: se a parte representada está antes do pronome, temos uma relação anafórica: “A baleia nadou até o menino, mas não queria feri-lo“; se, no entanto, o pronome se referir a algo que vem depois dele, temos uma relação catafórica: “Eu só te peço isso: carinho e compreensão“.
Pode acontecer, também, que o pronome não se refira a algo contido no texto, mas ao mundo exterior ou à situação em que estão os interlocutores. Neste caso, o pronome vai ser chamado de exofórico (de exo, “fora; exterior”; endofórico e exofórico constituem, portanto, um par opositivo como endógeno e exógeno, endogâmico e exogâmico). Na frase “Estou muito desanimado, porque me convenci de que este país é corrupto”, o pronome este só poderá ser interpretado se soubermos em que país está o falante.
É claro que escolhi exemplos em que a diferença está bem clara; posso te assegurar, porém, que nem sempre os pronomes se deixam classificar assim com tanta facilidade; nas teses que vêm sendo defendidas sobre esse assunto há muitas discussões sobre os reais limites da endófora e da exófora. Por isso, fiquei assaz espantado com a inclusão de um item como esse num concurso público! Poderia caber num concurso para ingresso no magistério superior, numa faculdade de Letras — e olha lá! Agora, usar esse conceito tão específico (e tão fluido) numa prova de Português comum é de um pedantismo próprio de asno que aprendeu lição nova. Tu conheces muito bem, Lucilene, aqueles novos-ricos que tentam aparentar um refinamento que não têm; pois então fica sabendo que no mundo acadêmico também temos as mesmas cavalgaduras. Fizeram um cursinho aqui, ou defenderam um mestradinho acolá, e sacodem o pouco que sabem (ou pensam saber) com o mesmo orgulho e energia de um porta-estandarte do Salgueiro na entrada do Sambódromo. Se soubessem um pouco mais, não fariam perguntas desse calibre. O que me admira é que tenham deixado uma dessas criaturas elaborar uma prova pública, mas infelizmente não há concurso para ingressar na banca de um concurso… Abraço. Prof. Moreno
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