Erexim

Um simpático vizinho falou-me, no elevador, de uma tal ladeira do Amendoim, que fica em Belo Horizonte: “Eles soltam o freio de um carro, com o motor desligado, e ele sobe em vez de descer! É verdade, vi na TV!”. Olhei-o com aquele ar constrangido com que olhamos os parentes caducos e os loucos mansinhos; ia fazer um comentário qualquer, mas o elevador chegou ao térreo e ele se lançou porta afora, todo atrapalhado com a coleira do cachorro. É um bobo feliz; eu podia jurar que ele estava quase orgulhoso com essa ladeirinha mineira que, na sua cabeça de porongo, consegue desafiar as leis da gravidade — mas não me espantei nem um pouquinho. Pois não era ele também que, na semana passada, explicava para o zelador de nosso prédio que a regra ortográfica nacional, válida em todo o território brasileiro, perdia suas forças quando chegava à nossa simpática Erexim?

Eu pensava que essa “briga já tão grisalha entre o x e o ch“, como costumava dizer mestre Luft, já estivesse encerrada há muito tempo. Tantas vezes ele escreveu sobre o assunto que eu julgava (às vezes sou bem ingênuo!) que os partidários do ch tivessem entendido a mensagem e abandonado para sempre o campo de batalha. Jacaré desistiu? Pois nem eles… Como os gafanhotos, eles reaparecem de tempos em tempos nos meios de comunicação, a defender nostalgicamente a sua causa perdida: querem porque querem que Erexim seja escrito com ch, como “se fazia ao ser criado o município” — mesmo que isso contrarie a ordem natural das coisas, como a famigerada ladeira do Amendoim.

Ora, o sistema ortográfico vigente, instituído em 1943, demonstra uma grande preocupação em simplificar e padronizar a grafia do Português, parte do esforço getulista em modernizar a sociedade brasileira. Para regulamentar a grafia das numerosíssimas palavras que fomos buscar nas línguas indígenas e africanas, a Comissão determinou que se use sempre X (nunca CH), sempre J (nunca G) e sempre Ç (nunca SS) — o que nos faz escrever açaí, acarajé, caxinguelê, xaxim, jibóia, miçanga.

Todas essas normas valem para os nomes comuns e para os nomes próprios (especialmente os topônimos, que são os nomes de lugar). Por isso, da mesma forma que abandonamos pharmacia, chymmica ou commércio, abandonamos também Triumpho, Trammandahy e Cangussu, que passaram a Triunfo, Tramandaí e Canguçu — sem que seus habitantes se revoltassem. A lei é clara, e ninguém teria a coragem de reivindicar a volta do ch em *Erechim se não estivéssemos diante de uma norma brasileira, feita por e para brasileiros: quando a lei estava quase pronta, uma comitiva de parlamentares da Bahia foi visitar o presidente da Comissão Ortográfica, alegando que o nome do estado era tradicional e não havia cabimento em retirar aquele charmoso H. Sensibilizado (ou intimidado), o presidente aceitou, então, introduzir a infeliz ressalva: “Os topônimos de tradição histórica secular não sofrem alteração alguma na sua grafia, quando já esteja consagrada pelo consenso diuturno dos brasileiros. Sirva de exemplo o topônimo Bahia“. Pronto! Como se diz no pampa, estava aberta a porteira! O adjetivo secular, aqui empregado com o sentido de “muito antigo”, logo passou a ser interpretado ao pé da letra: vários município que tinham completado um século até 1943 começaram a reivindicar esse esquisito “direito” de grafar errado o seu nome; em nosso estado, o exemplo mais constrangedor foi o de Bajé; os partidários do G obtiveram a aprovação de uma obscura “Câmara de Cultura”, do insignificante “Conselho Federal de Cultura” — durante o governo do general Médici, é claro, filho dileto de Bajé… Luft saudou o absurdo com ironia: “Já imaginaram se a moda pega? A cada pedido de grafia de rincão perdido, mandam o historiador aos arquivos. Que vai encontrar? Indecisões, arbitrariedades, cacografias. Já houve uma decisão ortográfica, homologada pela Academia, a respeito da grafia de topônimos e vocábulos indígenas, mas quem vai decidir de ora em diante é… o Conselho Federal de Cultura”.

É simples a posição defendida pelos especialistas: se há uma norma consolidada, vamos segui-la. E não se metam os leigos naquilo que não entendem: desses que querem a volta do CH em Erexim, poucos sabem que o Acordo de 1943 concedeu a exceção ao nome Bahia, mas deixou bem claro que ela não vale para seus derivados — tanto que se escreve obrigatoriamente baiano e coco-da-baía. Não entendo, portanto, por que os erexinenses (grafia oficial) haveriam de lutar por um injustificado *Erechim, ou os bajeenses (grafia oficial) por um anacrônico *Bagé. Mas a ladeirinha do Amendoim…

Depois do Acordo: jibóia > jiboia