Em Medicina, mais especificamente em Oncologia, as doenças são classificadas em graus conforme a fase evolutiva em que se encontram. Na língua inglesa essas fases são denominadas de stage; no Brasil, entretanto, há divergências quanto ao termo a ser usado: mais especificamente em São Paulo, denomina-se estádio, e para o processo de identificação da fase tumoral após o diagnóstico usa-se estadiamento. Porém, em outras partes do país usa-se estágio e estagiamento, respectivamente. Como as bancas de doutorado e mestrado reúnem especialistas de diferentes regiões, os mestrandos e doutorandos ficam como o marisco entre o mar e o rochedo, sem saber a qual examinador atender. Então, prezado professor, fica a pergunta: a fase em que se classifica determinado câncer é estádio ou estágio? Obrigado.”
Ricardo A. Z. — Porto Alegre
Meu caro Ricardo: embora a tua pergunta pareça, à primeira vista, fácil de resolver com a consulta a alguns bons dicionários, não é bem assim. Aliás, isso já pode ser intuído do fato bastante incomum de que a comunidade médica, sempre tão rigorosa em sua linguagem, esteja dividida entre estágio e estádio.
De pronto, tanto o Aurélio-XXI quanto o Michaelis preferem a forma estádio para as diversas fases de uma doença. O Dicionário Médico de Paciornick também. Os biólogos preferem estádio para as fases de desenvolvimento dos animais e das plantas. Na área Psi, a maioria dos textos utiliza também estádio com este significado de fase, etapa, período. O Francês faz o mesmo: usa stade para a fase de uma doença, reservando stage para o período cumprido por um estagiário. O Espanhol utiliza estadio.
E o Inglês (que é, como todos sabemos, a língua dominante na terminologia médica), como faz? Para minha surpresa, o que verifico nas minhas fontes? Que o Inglês hesita entre stage e stadium! Até parece que importamos também as dúvidas! O Webster, o Funk&Wagnalls, o Cambridge indicam a forma stage para designar as fases da doença, mas o prestigioso American Heritage não concorda, trazendo o surpreendente registro: “stadium… Medicine. A stage or period in the course of a disease. Biology. A stage in the development or life history of an organism“. Que tal? Para definir stadium, o dicionário emprega stage! Visitando vários sítios em língua inglesa sobre Oncologia, apesar da preferência preponderante por stage, encontrei artigos que usam o stadium preconizado pelo American Heritage. Não me surpreenderia se, neste momento, algum médico americano estivesse escrevendo para um sítio similar ao Sua Língua, perguntando afinal qual das duas formas ele deve usar…
Mas voltemos ao Português. Para os demais sentidos que o Inglês dá a stage (por exemplo, (1) cada uma das sucessivas etapas nas quais se realiza determinado trabalho; (2) unidade de propulsão de um foguete ou veículo espacial; (3) parte de um circuito eletrônico que efetua uma função determinada; etc.), nós usamos, sem hesitar, a forma estágio. Não é de admirar que uma parte expressiva do mundo acadêmico tenha adotado também esta forma para traduzir o stage da Medicina.
Tudo parece contribuir para o esmaecimento dos contornos de estágio e estádio nessa disputa pelo direito de exprimir o significado de etapa ou período: (1) o uso aparece dividido na literatura médica no próprio Inglês; (2) a etimologia desses vocábulos não está clara; não encontrei terra firme nas fontes que consultei; (3) a diferença fonológica entre eles é quase insignificante: o /d/ e o /g/, antes do /i/, mal e mal se distinguem, nessa sílaba postônica; (4) a tendência natural de reservar estádio para o local onde se praticam esportes pressiona o falante a optar por estágio quando quer designar a fase de um processo. São várias respostas para a primeira pergunta que um estudioso da língua sempre deve fazer — por que a hesitação entre as duas formas?
Agora, resta definir qual delas devemos usar. Meu mestre Celso Pedro Luft (O Romance das Palavras. São Paulo, Ática, 1996) conclui que a linguagem técnica prefere estádio, mas a linguagem corrente aposta em estágio. Eu não tenho dúvidas: estágio vai, gradativamente, desalojar a forma estádio. Enquanto isso não acontece, entretanto, os mestrandos e doutorandos devem pôr as barbas de molho. Ou usam estádio, que tem a seu favor a autoridade do Aurélio-XXI e do Michaelis, ou usam estágio e tomam a precaução de abrir uma nota de rodapé, bem no início de seu trabalho, explicando, tintim por tintim, por que preferem esta forma, apesar de saber que a forma estádio é privilegiada em alguns setores do mundo universitário. Nos trabalhos acadêmicos, o marisco tem a grande vantagem de poder explicar ao mar e ao rochedo a razão de suas escolhas; se isso for feito previamente, desarma-se qualquer crítica que o examinador tenha preparado, pois ele pouco pode objetar a uma escolha consciente e fundamentada. Abraço. Prof. Moreno