Caro Professor Moreno: escrevo-lhe pela segunda vez para que o senhor me esclareça uma questão em que jamais teria pensado, se não fosse uma estrangeira me ter perguntado. Nas frases, “Eu gostaria de vê-lo“, “Deixem-no em paz”, eu não sei explicar por que se usa o N e o L para ligar o verbo com o pronome. Obrigada.
Aida Sousa — Paris
Minha cara Aida: nada como o olhar de estrangeiros para nos fazer estranhar o que sempre nos pareceu óbvio. Essas consoantes adicionais a que te referes aparecem para permitir a harmonização da forma verbal com o pronome a ela ligado. Explico: dentre os pronomes átonos do Português, o pronome O (e suas flexões A, OS e AS), por ser vocálico, precisa sofrer pequenas alterações fonológicas para que possamos ligá-lo com naturalidade à forma verbal; em outras palavras, o conjunto [verbo + pronome] deve ser bem ajustado para que não se torne um estorvo para a nossa fala.
Tenho certeza de que tu (e a maioria dos meus leitores) ficaria espantada com a quantidade de teses que já foram escritas sobre o tema dos clíticos (assim são chamadas essas pequenas partículas átonas, como os artigos e os pronomes oblíquos átonos, que vivem na periferia dos vocábulos tônicos); posso te assegurar que no ar mais rarefeito do Everest acadêmico as pesquisas continuam — e devem continuar. Minha missão, contudo, é traduzir, na linguagem usual da planície em que todos vivemos, um pouco do que já se descobriu, a fim de ajudar falantes interessados como tu a perceber que existe um padrão coerente por trás de todos os fatos de nossa língua. No fundo, não há acasos, nem exceções; o que às vezes parece um simples capricho termina se revelando uma necessidade interna do organismo do Português.
É fácil visualizar o que acontece no caso dos pronomes: uma forma verbal qualquer é formada por uma seqüência de sons (que chamamos de fonemas). O pronome, por sua vez, também é um fonema (ou dois, quando está no plural). Quando o último fonema do verbo se encontra com o fonema do pronome, acontece o mesmo que no encontro entre duas pessoas: ou há empatia entre os dois e as coisas vão bem, ou alguma coisa desagradável termina transformando o encontro num verdadeiro choque. Em termos objetivos, todas as formas verbais do Português podem ser classificadas em três grupos distintos, quanto à sua terminação: (1) as terminadas em vogais (vendi, comprou, devolva, procuro); (2) as terminadas em nasal (fazem, vão, estudam, põe); e (3) as terminadas em R, S ou Z (essas duas letras representam o mesmo fonema, /s/). O pronome O, imitando o genial personagem Zellig, do Woody Allen, vai alterar sua forma para NO ou LO de acordo com a circunstância, conseguindo assim adaptar-se perfeitamente ao “ambiente” fonológico:
HIPÓTESE 1 — A forma verbal termina em VOGAL— Como o pronome também é uma vogal, não há necessidade de adaptação alguma, uma vez que o Português lida muito bem com encontros vocálicos: vendo-o, devolvo-as, encontrei-os, perdeu-a.
HIPÓTESE 2 — A forma verbal termina em NASAL — Agora o pronome vai aparecer na sua forma nasalizada, permitindo uma conexão suave com o verbo: fazem-na, dão-nas, estudaram-no. Queres fazer um teste doméstico? Experimenta pronunciar esses exemplos aí de cima usando o pronome sem a nasal — *fazem-a, *estudaram-o — e vais ver o que é bom!
HIPÓTESE 3 — A forma verbal termina em R, S ou Z — Este é o caso mais drástico: o fonema final do verbo terminaria formando sílaba com a vogal do pronome, criando pérolas do tipo *estudar-o (/estudaro/)ou *fiz-o (/fizo/). Por isso, uma regra interna suprime aquela consoante final e o pronome aparece encabeçado pela consoante L: comprá-lo, parti-lo, encontramo-lo. Não te esqueças de reexaminar a forma verbal quanto às regras de acentuação, já que seu perfil vai ser alterado quando a consoante for suprimida; escrevi sobre isso em acento em verbo com pronome.
Quando eu prestei meu exame vestibular para o curso de Letras, uma das questões era (ô, tempinho difícil aquele!) “conjugue o verbo pôr no presente do indicativo, com o pronome O enclítico”. Hoje eu sei a resposta:
Deu para enxergar a sutil diferença entre o põe-lo e o põe-no? Outra coisa que deves ter percebido é a esquisitice de algumas dessas formas. Na verdade, elas raramente são vistas em uso, porque preferimos, no Brasil, a próclise na maioria dos casos (a correta colocação do pronome em relação ao verbo é outro assunto). Elas continuam vivas, mas lá no zoológico; de vez em quando levo as crianças para olhar um “fá-lo” (faz+o), um “di-lo” (diz+o), um “qué-lo” (quer+o). Elas acham muito divertido. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo: seqüência > sequência