Um leitor chamado Michelângelo confessou que achava estranho dizermos “final de semana”, “final do jogo” e todos esses outros finais que andam por aí. No seu modo de ver, o correto seria empregar fim, que é um substantivo, e não final, que é um adjetivo. Seu argumento era simples: “Se final de semana é correto, também seria correto inicial de semana — o senhor não acha?”. Respondi que não, que não achava, pois, como consta em qualquer bom dicionário, final também pode ser substantivo, com o sentido de “última parte, conclusão, remate” — sendo, portanto, um sinônimo para fim, amplamente usado por todas as pessoas que falam e escrevem bem o Português — “cheguei ao final do livro”, “o filme teve um final feliz”, e assim por diante.
Na volta do correio, o leitor apresentou suas fontes: o Manual de Redação e Estilo do jornal O Estado de S. Paulo, escrito por Eduardo Martins, e A Imprensa e o Caos na Ortografia, de Marcos Costa. Ambos compartilham a mesma ojeriza ao nosso “final de jogo”, “final do século” ou “final do baile”. O segundo (que, além de jornalista, tem lá o seu curso de Letras) é mais saidinho e faz um arrazoado que, à primeira vista, até poderia passar por douto. Depois de apresentar um latinzinho inicial, para impressionar o leigo, aceita o fato de que final pode ser usado como substantivo, “mas será sempre o adjetivo substantivado, carregará sempre esse ranço. Quem usa final como substantivo parece que gosta precisamente do ranço, como há quem goste de caça faisandé. A imprensa, entretanto, deve evitá-lo. O normal é que no fim (substantivo) da missa o padre dê a bênção final (adjetivo)… Quando está no minuto final (adjetivo), o jogo está chegando ao fim (substantivo). Esse é o emprego natural, despojado, distante de ostentações. Comunicar-se é simplificar”.
Que reparo podemos fazer ao que ele disse? Primeiro, o tom categórico, próprio dos manuais destinados à circulação interna. Afinal, é para isso que existem: homogeneizar o texto de uma publicação, padronizando as escolhas estilísticas e antecipando as dúvidas que poderão atrapalhar os repórteres e jornalistas. Um manual desses representa a soma da experiência acumulada pelos profissionais da empresa — mas seu caráter normativo não tem nenhum valor aqui fora. O Estadão define como quer que sua equipe escreva, a Folha de São Paulo faz o mesmo, a Zero Hora também, cada um segundo as suas preferências. Marcos Costa tem todo o direito de especificar que, em seu jornal, sempre vão preferir fim a final — mas essa decisão não representa nada para quem estuda a língua portuguesa, pois na mesma cidade, em outra esquina, o editor de outro jornal pode pensar de outra forma.
Em segundo lugar, esse autor não tem a leitura necessária para falar de modo tão taxativo. Quem disse que usar final como substantivo é ranço? Quem decretou que o correto é empregar fim? Certamente não foram os bons autores. Em Portugal, Camilo Castelo Branco, um de meus preferidos, discorda: “No final de cada ato, saía a visitar uma amiga”; “No final das jornadas parece que o vigor do caminhante se recobra”. Eça de Queirós parece não saber disso: “o realejo do bairro … veio tocar o final da Traviata“; “quando Ernestinho contara o final do seu drama”; “Craft, procurando troco para o cocheiro, contava o final das corridas”. Os leitores pós-modernos poderiam objetar que cito autores de outro século; pois não seja por isso: Saramago comparece com “eu podia ter posto no final da sua frase” e “A noite está quente neste final de Agosto”. A seu lado, Lobo Antunes completa: “no final de cada exame”. Todos rançosos?
No Brasil, Euclides da Cunha oferece um balaio de exemplos: “triunfam num final de luta”; “O narrador destes dias chega no final de um drama”; “no final de um dia inteiro de fadigas”. E Machado? Xiii, nosso gênio não leu esses manuais de redação: “O meu sonho foi quase assim, ao menos no final“; “A quem quer que este final de monólogo pareça egoísta”; “Já é alguma cousa neste final de século”. Bilac, então, apenas verseja: “E, fatigado de calar teu nome/ Quase o revelo no final de um verso”. Querem modernos? Clarice Lispector: “um prenúncio do que ia acontecer no final da tarde”. Guimarães Rosa: “Mas, no final dos comentários, infalível era a harmonia”; “No final do feijoal, a variante se bifurca”; “como o vento ronda, no final das águas”. Nelson Rodrigues: “E, no final, tive a vaia e tive a apoteose”; “Gostou de uma menina e, no final da tarde, os dois passeavam”; “Neste final de século, a Imaturidade é a musa perfeita, sereníssima, universal”. Encerro, simbolicamente, com Drummond: “E por que o nome dela não pode sair no final de uma notícia que nem sequer a elogia?”. Acho que chega. Dá para perguntar, como a gente fazia, no colégio, nas lutas de brinquedo: “E aí? Vocês se rendem?”. Procurem ser mais tolerantes com o uso que as outras pessoas fazem do idioma; para uma mesma situação pode haver mais de uma escolha. Afinal, escrever bem é eleger, entre várias formas corretas, a que soa melhor para o contexto. Só isso.