freelance

Como se formou e como se flexiona o nome do gado GIROLANDO,? O que significa, realmente, a expressão SOLUÇÃO DE CONTINUIDADE? E FREELANCE, por que se chama assim? Veja a resposta a essas três perguntas, e muito mais! 

Sou gaúcho o suficiente para saber alguma coisa sobre o gado que produz a carne que ponho na brasa, mas  confesso que me pegaram de supresa as perguntas que fez um leitor sobre o gado girolando, sobre o qual ele fala com grande familiaridade. “Professor, girolando tem feminino? E sendo ele o resultado de uma cruza de gado gir com o holandês, por que não deu girolês?”. Antes de responder, fui pesquisar sobre esse bovino que eu desconhecia. Uma publicação da Embrapa veio suprir a lacuna de meus dicionários: na pecuária leiteira, é muito usado o cruzamento da raça holandesa, especializada em leite, com uma das raças de origem indiana, mais rústicas, que formam o grupo Zebu (que inclui o gir, o guzerá e o nelore, entre outros) ― daí o girolando, o guzolando e o nelorando, híbridos lexicais que a língua precisou produzir para designar esses novos membros do rebanho. São vocábulos necessários, mas, convenhamos, não ganhariam nenhum concurso de beleza: Jorge Luis Borges escreveu que o nome do ditador argentino Ongania parecia um tempo de verbo; pois, para mim, a enumeração dessas raças soa como uma lista de gerúndios…

         São duas as dúvidas do leitor. A primeira é saber se girolando tem feminino; não vejo por que não teria, já que este é o paradigma seguido pelos substantivos com dois gêneros. Afinal, se deste cruzamento nascem novilhos girolandos, por que não nasceriam também novilhas girolandas? A segunda se refere aos elementos utilizados na composição: já que o segundo elemento é holandês, por que não se formou girolês? A resposta é muito simples: na estrutura do composto, é imprescindível que os dois radicais (/gir/ e /oland/) estejam presentes para que o nome das duas raças  continuem reconhecíveis ― o que não aconteceria se a contribuição de holandês fosse apenas o sufixo –ês, o que produziria esquisitas formações como  *girês, ou *girandês ― lembrando que a forma sugerida pelo leitor, girolês, é usada para designar a mestiçagem do gir com o charolês.

         Outra consulta vem de uma velha amiga, camiseira de mão-cheia, que passa o dia ao pé do rádio, trabalhando na máquina de costura. “Professor, ouvi ontem o prefeito da minha cidade afirmar que a merenda escolar não vai sofrer solução de continuidade. Fiquei preocupada porque tenho dois netos na escola pública e não entendi muito bem se a notícia é boa ou ruim”. Ora, cara amiga, pode ficar tranqüila; se ele estiver falando a verdade, a merenda escolar vai continuar. O prefeito prometeu que ela não vai sofrer solução de continuidade, isto é, não vai sofrer interrupção ― em suma, a continuidade não vai ser dissolvida. Lembro que esta solução, aqui, não vem do  verbo resolver (um problema, um enigma), mas sim de dissolver (a mesma matriz que nos dá o café solúvel). Esta é uma daquelas expressões que, a meu ver, perdeu toda sua utilidade na fala diária, exatamente porque as pessoas a entendem de maneiras diferentes. Em certos bolsões de linguagem, contudo, continua a ser empregada com sucesso; é o caso, por exemplo, da Medicina, em que “solução de continuidade na pele” designa qualquer corte ou falha neste tecido.

         Por fim, a surpresa (para mim, é claro; para você, leitor, pode ser informação mais velha que o jornal de anteontem): folheando o clássico Ivanhoé, de Walter Scott (preciso dizer que era uma edição da Inglaterra, onde preferem a afetada pronúncia /aivanrou/…), em busca de uma passagem perdida, encontrei, lá pelas folhas tantas, o bravo cavaleiro de Bracy dizer que tinha falado com o rei Ricardo Coração de Leão, oferecendo-lhe “the service of my free lances” ― algo assim como “o serviço de meus mercenários”.  Na Idade Média, era comum que cavaleiros e soldados veteranos oferecessem seus serviços a senhores que estivessem dispostos a pagar. Esses soldados da fortuna ― free lances (literalmente, “lanças livres”) ― eram aventureiros que ora se engajavam sozinhos em alguma força militar, ora compunham poderosas corporações (é o caso das Grandes Companhias, que atuaram ao lados dos franceses na Guerra dos Cem Anos). Uma repassada no Oxford me informou que essa expressão (também grafada freelance) passou a ser usada para o político que pula de partido em partido, sempre em busca de proveito próprio, até chegarmos ao nosso frila, pessoa que trabalha por conta própria, sem vínculo específico com qualquer empresa ― palavra que usei todos esses anos sem jamais suspeitar que trouxesse uma lança escondida em seu bojo. 

Depois do Acordo: tranqüilo > tranquilo