Como as roupas expostas à luz do Sol por muito tempo, as palavras e expressões também podem desbotar, levando-nos a reforçar o seu significado com outros recursos que a língua oferece. Ao lado de redundâncias grosseiras como “subir para cima”, temos redundâncias perfeitamente justificáveis como “ambos os dois”, “bonita caligrafia” e “há dois anos atrás”.
Uma leitora que assina como Mãe Aflita (quase um pleonasmo, diria um cínico…), desconfiada da escola em que o filho estuda, escreve para perguntar se não andam servindo merenda estragada a seu rebento: “Mandaram ler O Burrinho Pedrês, professor. Sei que Guimarães Rosa é famoso, mas já na primeira folheada encontrei um erro que considero primário: ele escreve há dois anos atrás! Aprendi que isso é uma redundância inaceitável. A professora diz que não é mais. E o senhor?”.
Pois eu também digo que não, minha cara Mãe Aflita. Se lhe serve de consolo, a mim também ensinaram a mesma coisa, e o meu mestre pessoal, Celso Pedro Luft, recomendava expressamente que o atrás, em casos como esse, fosse eliminado. Acontece que comecei a discordar. São tantos os brasileiros bem falantes que usam essa construção que deve haver algo que a justifique. Eu não escrevo assim, mas preciso entender a razão de sua vitalidade, até porque tenho sentido, várias vezes, a tentação de empregar esse adverbiozinho de reforço. Como o que não me falta é estudo, só posso imaginar que aqui exista um daqueles redemoinhos que volta e meia se formam na correnteza da língua. É o momento de lembrar, como ensinava um antigo professor de Lingüística, a teoria do degrau: se meu vizinho, ao entrar no seu prédio, tropeça no degrau, podemos imaginar que ele esteja com algum problema de visão, ou de coordenação motora, ou coisa assim. No entanto, se um grande número de moradores tropeça no mesmo lugar, então é hora de examinar o degrau…
É muito comum recorrermos voluntariamente a algum tipo de reforço quando, a nosso ver, houve o enfraquecimento do significado original do vocábulo. Para mim, é o que está acontecendo com este emprego do verbo haver para indicar o tempo decorrido, que parece caminhar na mesma direção que seguiram ambos os dois e bela caligrafia. Como já mencionei aqui, em outra ocasião, a significação dual de ambos ficou tão enfraquecida na consciência de muitos falantes que fez surgir, espontaneamente, a construção ambos os dois, que tem eco no Inglês both two, no Italiano ambe due e no Espanhol ambos los dos. Ninguém é obrigado a usar esse reforço, mas quem o fizer não deve, a meu ver, ser corrigido. (Disseram-me que Valter Hugo Mãe, uma das estrelas da literatura portuguesa atual, emprega ambos os três; deve ser por ironia, imagino, mas ainda não pude verificar in loco esta curiosa variante). O mesmo ocorreu com caligrafia, que significa, originalmente, “escrita bela” ― sentido que fica muito claro, por exemplo, numa frase como “infelizmente a escola atual deixou de valorizar a caligrafia”. No entanto, o progressivo “esquecimento” de que o radical grego cali significa “belo” levou-nos a aceitar como perfeitamente válidas expressões como belíssima caligrafia ou péssima caligrafia (a rigor, uma redundância a primeira, um absurdo a segunda).
Fui conferir o conto do burrinho e lá está, realmente: “Assim mais assim, com os erros todos e muita demora, até há uns dois anos atrás eu ainda era homem para pôr algum bilhete no papel…”. Quero frisar que isso saiu da pena de um dos escritores mais “gramatiqueiros” da literatura brasileira; nenhum outro, como ele, percorreu de trás para diante os velhos gramáticos caturras, garimpando arcaísmos e colecionando nugas para criar o estilo que o tornou inconfundível. Ora, pelo que se vê, o advérbio atrás aposto ao verbo haver não feriu seu ouvido treinadíssimo para a linguagem, e Rosa, numa decisão técnica e pessoal, julgou necessária sua presença para obter o efeito que procurava. Talvez fique mais tranqüila, prezada Mãe Aflita, se souber que se juntam a ele vários outros autores modernos que a senhora deve conhecer: Érico Veríssimo (“D. Maria Luísa lhe diz que a filha saiu há 2 horas atrás para ir visitá-la”); Lima Barreto (“Quem, há cinco anos atrás, acreditaria na utilização de aeroplanos para atacar forças inimigas?”); Rachel de Queiroz (“Há vinte anos atrás a gente no Rio só falava guria“); Nelson Rodrigues (“Há quinze anos atrás, os dois se casaram, no civil e religioso”).
Suspeito que o hábito de usar atrás como apoio do verbo tenha suas raízes na língua falada: enquanto na escrita a presença do “H” informa o leitor de que ali está o verbo haver, na fala, que é instantânea e sem replay, o atrás é muitas vezes indispensável para que o ouvinte possa discernir, desde o início da frase, do que estamos falando. Na escrita, por sua vez, permanecem outras áreas de turbulência, principalmente quando usamos o imperfeito do indicativo, pois existe também um “há dois anos” que, por indicar tempo continuado, não comporta o reforço do atrás: compare “Há dois anos ele tinha o dinheiro; só faltava encontrar o terreno certo” com “Há dois anos [atrás] ele tinha o dinheiro, mas perdeu tudo”. Não sei se a resposta está aqui, mas sei que, esteja onde estiver, deve existir uma causa para um comportamento majoritário no universo dos falantes.
Depois do Acordo: Lingüística>Linguística tranqüilo>tranquilo
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