Como estou diariamente envolvido com dezenas de textos sobre gays e lésbicas, tendo em vista que realizo um trabalho específico nesta área, às vezes preciso referir-me às pessoas que não são gays e tenho que deixar isso claro no texto. Nestes casos, uso a palavra heterossexuais mas todos temos de convir que é muito grande, principalmente se comparada com gay, e fica pedante e cansativa se for repetida duas ou três vezes num trecho pequeno de texto. Assim, é muito comum as pessoas se referirem aos não-gays simplesmente como héteros. Minha dúvida é sobre a existência desta palavra e sobre a grafia correta, pois não sei se deve levar acento e posso flexioná-la em gênero e número como um adjetivo ou substantivo normal. Por exemplo: “Compareceram à Parada Gay milhares de gays e héteros, inclusive suas famílias”; “Eu achava que sua irmã fosse hétera mas ela mesma me confirmou que é gay (lésbica)”. Pergunto: a palavra hétero existe? Tem de ser escrita com acento? Aguardo sua resposta. Muito obrigado e um grande abraço.
Marcelo de A.
Meu caro Marcelo: um dos mais recentes processos de formação de palavras no Português é o que chamamos de redução: no momento em que algum vocábulo complexo, geralmente composto de elementos eruditos e científicos, passa a fazer parte do vocabulário quotidiano, há uma forte tendência a reduzi-lo para um padrão prosódico mais confortável. Assim, a fotografia virou foto, o telefone virou fone, a motocicleta, depois de passar por motociclo, virou moto. Observa como o mesmo não ocorreu com a caligrafia ou a filmografia, com o interfone ou o xilofone, exatamente pela pequena ocorrência desses vocábulos na linguagem usual (ao menos até agora). A meu ver, este processo de redução, extremamente produtivo no Francês, será cada vez mais comum em nosso idioma.
O vocábulo heterossexual era perfeitamente manejável na linguagem técnica, onde vivia recluso. No momento em que o termo entrou na língua do dia-a-dia, no entanto, passou a ser um trambolho prosódico, sofrendo a redução para hétero, proparoxítono, como observaste. A acentuação destes vocábulos “encurtados” segue a regra oficial; por isso, bíci (de bicicleta), ou deprê (de depressão). Não importa que a parte remanescente fosse, no vocábulo original, uma forma presa (geralmente elementos de origem grega ou latina) — ela agora passa a ser autônoma e independente. Já estamos acostumados a pornô, máxi, míni, múlti; o supermercado virou, em algumas regiões, o súper; a poliomielite já tornou-se pólio, e assim por diante — tudo isso no Português usual (mais ainda na linguagem específica de várias profissões; basta ouvir médicos conversando entre si para avaliar como o processo está mais adiantado).
Plural ele vai ter, naturalmente: héteros, como fotos, motos, máxis, pólios. Quanto à flexão dele no feminino, acho que ainda preferimos o seu uso invariável (uma militante hétero). No entanto, não me surpreenderia se fosse crescendo a tendência a transformá-lo em biforme (hétero, hétera), principalmente porque esse final em “O” inexiste em vocábulos femininos, com exceção apenas de libido e de tribo. O tempo dirá. Abraço. Prof. Moreno