hibridismo

Quem tem a paciência de ler minha coluna sabe muito bem que, apesar do tom brincalhão destas linhas, sempre tratei com seriedade as perguntas dos meus leitores. Está no sangue: sou professor desde que me conheço por gente e jamais vou humilhar alguém por aquilo que não sabe. Quem me escreve, portanto, não precisa pedir desculpas por suas dúvidas, como fez a leitora de Pelotas que me mandou uma adorável cartinha (daquelas legítimas, com selo e envelope endereçado pelo próprio punho — e, como era de esperar, muito bem escrita) sobre os hibridismos.

“Releve a ignorância desta quase anciã, professor, mas achei que hibridismo era um conceito tão superado quanto o Elixir Paregórico. Terminei a Escola Normal antes da guerra contra o Eixo e lembro muito bem que um excelente professor condenava qualquer palavra que misturasse duas línguas diferentes. Para ele, sociologia era malformada porque metade vinha do Latim (socio), metade do Grego (logia)”. Acrescenta: “Nunca cheguei a lecionar, mas sempre gostei de ler sobre nosso idioma; eu gostava mesmo era de ler o que o querido prof. Luft escrevia  sua coluna No Mundo das Palavras. Agora, meu neto veio nos ver aqui em Pelotas e disse que aprendeu na faculdade que bafômetro é um hibridismo horroroso, empregado em vez da forma correta, que seria etilômetro. Mas ainda se fala nesse tal de hibridismo? Eu sempre achei muito intolerante essa posição; não me parece justo condenar um vocábulo só porque tem duas origens, o senhor não acha? Se eu estiver dizendo bobagem, o senhor desculpe esta avozinha coroca, mas responda por carta, para eu não passar vergonha no jornal”.

Vergonha, prezada leitora? Vergonha devia sentir qualquer professor que ainda tem a coragem de falar numa chinesice dessas, em pleno séc. XXI! O conceito de hibridismo, assim como o de purismo, provém daquela época em que ainda se preparavam os movimentos totalitários que iriam eclodir no início do séc. XX. Só um ingênuo não percebe o quanto a idéia absurda  de pureza lingüística está intimamente associada à de pureza racial; a obsessão é a mesma, a loucura também. Ora, assim como os puristas da raça consideravam que toda e qualquer mestiçagem viria “manchar” nosso patrimônio genético, assim também os puristas da linguagem tentavam livrar nosso idioma de qualquer traço que pudesse “desvirtuá-lo”. Para isso, lutavam em duas frentes: a mais barulhenta era a perseguição implacável das palavras estrangeiras que tivessem se infiltrado em nosso léxico (por que não marcá-las com uma estrela amarela no peito, para que pudessem ser facilmente reconhecidas?); a outra, mais discreta, era a condenação inapelável, por parte desse tribunal da Inquisição, dos compostos eruditos que tivessem nascido de um “casamento inter-racial”. Os vocábulos que utilizam elementos das línguas da Antigüidade são “legítimos” e “bem-vindos”, já que procedem de um berço respeitável (desde, é claro, que tenham se casado entre si, sem se misturar com a língua vizinha; o folclórico Augusto Comte teve a má idéia de juntar o elemento socio, do Latim, com logia, do Grego, e levou chumbo da patrulha purista). Agora, os que nasceram do casamento “espúrio” de dois idiomas, esses deveriam ser apontados com o dedo e denunciados como hibridismos (os leitores terão percebido, a esta altura, que chamar um vocábulo de híbrido é o mesmo que chamar uma pessoa de mestiça com a intenção de ofender).

Ora, esses autores nunca entenderam que um generoso mecanismo de nossa língua permite que o falante decomponha as palavras que conhece e use os elementos resultantes em novas combinações vocabulares. A dona de casa sabe que o termômetro, o velocímetro e o barômetro são instrumentos de medir; por isso, quando vai dizer que cozinha por intuição, sem determinar com precisão as quantidades dos ingredientes, diz que usa o olhômetro; os alunos às vezes respondem usando o chutômetro; quando alguém não entende as indiretas da namorada, deveria ligar o desconfiômetro; o relógio que mede o tempo de estacionamento pago (parking, do Inglês) é o parquímetro. Não é uma maravilha? O dispositivo que permite avaliar o teor alcóolico do ar expirado pelo motorista pode ser chamado, realmente, de etilômetro — mas preferimos chamá-lo de bafômetro, muito mais expressivo e de compreensão instantânea para todos os brasileiros. O radical bafo todo o mundo sabe o que é; já etil… Como a senhora mesmo disse, é um absurdo condenar belos vocábulos como esses sob a alegação de que são mestiços. Mestiços somos todos nós, neste país, e fascistas são todos aqueles — sejam brancos, sejam negros — que vivem a alardear ridiculamente a sua presumida pureza racial.

Depois do Acordo:

idéia > ideia

lingüística > linguística

Antigüidade > Antiguidade