hipercorreção

Não é qualquer pessoa que comete erros de hipercorreção; paradoxalmente, eles só atacam os falantes que têm certo grau de estudo, preocupados honestamente com o correto uso do idioma. Não deixa de ser uma ironia lingüística: eu fico tão ansioso por evitar um erro para o qual fui alertado, que termino aplicando a regra onde não devia aplicar. Por exemplo: na fala popular de algumas regiões do Brasil, as pessoas mais simples trocam o /l/ pelo /r/, dizendo *carça, *sordado, *marvada, em lugar de calça, soldado e malvada. Imaginemos que eu falasse assim e que me desse conta, num determinado momento, que essa troca é um desvio da norma culta, extremamente prejudicial à minha imagem (em nosso país, todos sabem, a linguagem é um dos mais terríveis intrumentos de discriminação social). Consciente agora do meu erro e dos prejuízos que ele acarreta, passo então a evitá-lo a todo custo, mas com tal empenho que termino exagerando: eu, que dizia corretamente disfarça e armário, passo a dizer *disfalça e *almário. No fundo, estou cometendo um erro novo ao tentar evitar um erro velho. O que me levou a errar foi um esforço desmesurado de correção, que foi além dos limites em que a regra deve atuar — daí o nome de ultracorreção, que alguns lingüistas dão ao mesmo fenômeno.

Por sua forte motivação sociolingüística, as hipercorreções são mais encontradas na linguagem dos indivíduos em ascensão cultural, pois essa mudança de lugar na pirâmide social implica uma inevitável tomada de consciência, por parte do falante, dos traços lingüísticos que caracterizavam a posição que ele ocupava anteriormente. Essa reavaliação de como eu era antes e de como quero ser (ou parecer) agora é freqüente na sociedade moderna (não discuto aqui se isso é bom ou não; apenas registro o fato). Em termos de linguagem, esse processo é benéfico, pois termina levando o falante a expressar-se cada vez mais de acordo com aquilo que chamamos de Português Padrão. A hipercorreção só vai aparecer quando o falante faz uma avaliação incorreta dos dados lingüísticos que chamaram sua atenção, corrigindo ali onde não há nada a corrigir. 

Esse é o tipo de erro que me faz rir. Devido à minha formação, jamais pude achar graça nos erros de Português que alguém comete — ou por respeito a quem não teve a oportunidade de estudar, ou por entender que ali está atuando algum processo lingüístico que deve ser investigado. Não zombo, nem sinto piedade de quem erra na minha frente: honestamente, fico é interessado, porque cada erro me desafia a encontrar as suas causas (e, não poucas vezes, a reformular os meus conceitos de “erro”). Agora, confesso que acho os casos de hipercorreção simpaticamente cômicos, próprios para um anedotário da linguagem. Meu grande mestre Luft, por exemplo, que não era de muitos risos, dá-nos um bom exemplo:

“Caboclo, quando pega de ficar instruído, sabe que deve melhorar sua linguagem. Aprende que, entre mais coisas, não deve falar “paia”, “véia”, “reio”, “mio”, “oio” e “baruio”. Deve é dizer palha, velha, relho, milho, olho e barulho. Pois lá um dia o jeca-tatu vai à cidade falar com doutor. Claro, não se esqueceu de miorar, aliás, melhorar a linguagem. O doutor logo viu o esforço: não só o jeca aprimorou o velho e o barulho, mas ainda as “telhas” de aranha e as “arelhas” da “pralha”. Isto é o que se chama exceder-se. Saltou no cavalo tão bem, que caiu no outro lado.” 

Um caso exemplar de hipercorreção ocorreu, muito adequadamente, diante do grande mestre de nosso folclore, Luís da Câmara Cascudo, culto e engraçado como poucos. Quem conta é Diógenes da Cunha Lima, no seu Câmara Cascudo: um Brasileiro Feliz:

“Luís da Câmara Cascudo é convidado por um amigo, velho mestre de fandango, para assistir a um ensaio. Estão compostas as duas alas de marujos e, ao som de instrumentos de corda, marinheiros e oficiais começam a cantar:

— Nas ôndias do mar …

Pára, pára! — ordena o mestre. — Respeitem o professor Cascudo! Eu já disse mais de mil vezes que a palavra não é ôndias. A palavra certa é ôndegas!”

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