Um amigo quer saber de onde veio a expressão “Para mim, isso é Grego”. É uma longa, mas interessante história. Todos sabem que nossa língua pertence à família das línguas românicas, sendo irmã, portanto, do Francês, do Espanhol e do Italiano, entre outras. (Parêntese necessário: embora não seja o costume, escrevo o nome desses idiomas com inicial maiúscula porque não suporto vê-los confundidos com os respectivos gentílicos; já demonstrei a vantagem dessa prática quando, ao mencionar os africanismos que entraram no Português do Brasil, eu falava na “insubstituível bunda, que o Português Europeu raramente usa” — frase que, com minúsculas, seria no mínimo escandalosa.) Mas, voltando: como as línguas não vêm ao mundo em dia certo, como os bebês, é impossível determinar a ordem em que nasceram. Para o Padre Vieira, sempre sábio e ponderado, a nossa seria a mais velha da família; para Bilac, que a chama de “última flor do Lácio”, seria a irmã caçula (e que poeta hesitaria em sacrificar a verdade histórica para salvar um belo verso como esse?). Não importa, pois isso não muda o fundamental de sua linhagem: ela é filha do Latim e neta do Grego, o que a torna herdeira de um léxico que está na base de toda a cultura do Ocidente.
Nem sempre é fácil separar o que nos veio de uma do que nos veio de outra, já que a filha recebeu o enxoval das mãos de sua mãe, contendo, naturalmente, muitas peças que tinham pertencido à avó. Essa confusão essencial entre o legado grego e o legado romano, aliás, é o que fez nascer o utilíssimo adjetivo composto greco-romano, que traduz exatamente essa relação inseparável que existe entre as duas culturas. Quando a Grécia se tornou uma província de Roma, em 146 a.C., começava ali, paradoxalmente, a conquista da civilização romana pela cultura dos gregos. O grande poeta Horácio entendeu perfeitamente o que estava acontecendo, ao escrever “Graecia capta ferum victorem cepit et artis intulit agresti Latio“, o que, na intenção, queria dizer algo como “a Grécia, apesar de vencida, acabou subjugando seu feroz vencedor, levando as artes ao inculto Lácio”.
A civilização grega deixou sua marca inconfundível em todos os setores da vida romana — na filosofia, na oratória, na arte, na ciência, nos hábitos de comer e de vestir, na religião e, principalmente, na linguagem. Fascinadas com esse idioma riquíssimo, as pessoas instruídas logo se tornaram bilíngües, e vários autores romanos escreveram tratados e peças diretamente em Grego. Falava-se Grego na intimidade das famílias aristocráticas, e seus filhos pequenos aprendiam o Grego como primeira língua, o que, como deplorou Quintiliano (e com razão), os fazia mais tarde falarem o Latim com sotaque estrangeiro. Esse confronto constante dos romanos com uma língua que eles reconheciam ser mais bela e mais culta do que a sua ocasionou o surgimento de um sentimento de inferioridade que se manifestou, em certos meios nacionalistas, pela condenação quase xenófoba de tudo o que se relacionava com a Grécia. Em muitos lugares, falar Grego em público tornou-se impensável; o famoso Lúculo, celebrado por seus banquetes e por sua excepcional biblioteca, não resistiu à tentação de escrever em Grego a sua História de Roma, mas tomou o cuidado de introduzir no texto uma série de erros grosseiros, para deixar claro (não sem uma ponta de ironia) que ele não passava de um romano usando a língua da moda. O próprio César morreu em Grego, como nos conta Suetônio: ao ver que Brutus, seu filho adotivo, estava entre os que o apunhalavam, olhou-o com infinita tristeza e exclamou não o conhecido “Tu quoque, Brute“, mas sim “Kai su, teknon!” (“Você também, meu filho!”) —, porque César era de família nobre e não ia morrer como um qualquer, falando Latim…
Como se sabe, essa importância extraordinária atribuída ao Grego durou até o fim do Império Romano. A Idade Média, no entanto, praticamente esqueceu esse idioma; os principais textos da Grécia permaneceram desconhecidos, guardados no Bizâncio e no mundo árabe, e só fizeram sua reentrada no cenário europeu no período que recebeu, exatamente por isso, o nome de Renascimento. No período medieval, os monges copistas, que só conheciam o Latim, ao deparar com passagens em Grego no manuscrito que estavam copiando, anotavam simplesmente “Graecum est, non legitur” (“É Grego, não se lê”), o que revela que eles, além de não entender o que estava escrito, também não sabiam traçar os caracteres do alfabeto grego. Desvinculada desse contexto original, a frase entrou em todas as línguas para designar algo que parece totalmente incompreensível; se o freguês quiser, pode substituir Grego por Aramaico, Javanês ou Suaíli, com o mesmo efeito. Na Grécia, dizem “isso é Chinês” — por razões óbvias.
(jornal Zero Hora, na coluna “O Prazer das Palavras”)