licença poética

 

Prezado Professor: na bela música Samba da Volta, de nosso saudoso e grande Mestre Vinícius de Moraes, encontra-se o seguinte verso: “Me brincou“. Está correto usar o pronome oblíquo me com o verbo brincar? Qual a idéia de Vinícius, neste caso? 

Milton Jr. — Santos 

 SAMBA DA VOLTA – Toquinho/Vinícius de Moraes

“Você voltou, meu amor

A alegria que me deu

Quando a porta abriu

Você me olhou,

Você sorriu,

Ah, você se derreteu

E se atirou, 

Me envolveu,

Me brincou,

Conferiu o que era seu

É verdade, eu reconheço

Eu tantas fiz

Mas agora, tanto faz…” 

Meu caro Milton: Vinícius foi um eterno apaixonado (sorte a dele!), e em coisas de amor ele é mestre como ninguém. Já deves ter percebido que os enamorados têm uma linguagem totalmente especial, nem sempre dentro dos rígidos parâmetros da língua escrita. A minha tese de mestrado, por exemplo, que é sobre o diminutivo no Português, passou ao largo do idioma dos amantes, pois eles diminutivam tudo — até verbo conjugado! Quem já namorou, sabe o que estou dizendo.

Na regência, por exemplo, muitas vezes o gostar de perde, na boca dos que se amam, sua preposição: te gosto é muito comum entre namorados, e quem tem a sorte de ouvir uma frase dessas nem percebe que a regência não é usual, nem que o pronome, contrariando os cânones de colocação, está sendo utilizado no início da frase.

Acho que é o caso desse “me brincou”. Deveria ser “brincou comigo“, mas o ouvido do poeta, mais o contexto (o discurso amoroso…), fez Vinícius preferir a inversão. Eu diria até que ele conseguiu um efeito extra, que faz o verbo brincar ampliar o seu significado usual, numa extensão que eu não posso expressar em palavras, porque é exatamente isso o que os criadores fazem com a língua: empurrá-la para um pouco além dos seus limites. 

Há algumas semanas, escrevi sobre um deslize do Chico — Chico também escorrega no Imperativo — e muitos leitores reagiram em sua defesa, alegando também que seria um caso de licença poética, isto é, poderia ser um desses momentos em que o artista rompe deliberadamente com os padrões usuais para aumentar sua expressividade ou para representar a fala característica de um personagem ou de uma classe. Infelizmente, dá para ver que não foi nada disso; a forma que ele usa, “Mas nãotão ingrata” é, de todo o Português, a mais artificial, a mais livresca e a menos conhecida de todas as formas do imperativo! Na canção do Chico, o correto seria “Não sejas tão ingrata”, que corresponde à 2a. pessoa do singular. Entretanto, essa forma, todos sabemos, é muito estranha; usaríamos, se quiséssemos falar como todo o mundo, a forma da 3a. pessoa, “Não seja tão ingrata”. Isso seria “licença poética“, perfeitamente defensável. No entanto, ele (ou talvez o Ruy Guerra) foi buscar logo o ““, que é a 2a. pessoa do imperativo AFIRMATIVO — uma exceção isolada em nossa conjugação, porque só o verbo SER, de todos os 60.000 verbos de nosso idioma, deixa de formar essa pessoa a partir do Presente do Indicativo. Ou seja, não escolheram a forma defendida pela gramática prescritiva (sejas), nem a forma do Português falado (seja); escolheram (errado) aquela que poucos (raríssimos) usam no Português culto escrito formal. É a famosa atração do abismo … 

Ao apontar esses deslizes no imperativo do Gilberto Gil, do Mílton Nascimento, do Chico e do Ruy Guerra, pensava ter deixado clara a minha intenção: ressaltar como a formação do imperativo real está divorciada da formação do imperativo artificial, descrito nas gramáticas escolares. A linha de raciocínio era simples: se letristas desse nível tropeçavam no degrau do imperativo, o que diríamos dos falantes comuns… Para minha surpresa, no entanto, várias leitoras (ainda não meditei sobre essa coincidência…) vieram em defesa desses compositores, como se eu os estivesse querendo diminuir, o que me forçou a recordar dois pontos básicos da Lingüística: (1) eu devo ter-me expressado mal, pois não me fiz entender; (2) a linguagem é uma parte muito sensível da anatomia de uma pessoa; todo o cuidado é pouco ao tecer qualquer comentário sobre ela, porque dói mais que nervo exposto. Espero, agora, ter firmado a paz. Abraço. Prof. Moreno  

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