O advérbio LITERALMENTE foi atacado pelo mesmo vírus da imprecisão que tornou TEMPORÃO e HANDICAP palavras praticamente inúteis.
Em qualquer língua viva podemos encontrar centenas de exemplos de vocábulos que mudaram de significado com o passar do tempo, ampliando ou reduzindo o alcance que tinham na sua origem. Outrora as chaminés fumavam e os índios podiam fumar seu peixe; no entanto, depois que Colombo descobriu a América, fumar passou a designar especificamente o hábito daninho de aspirar a fumaça do tabaco (uma invenção do demo, sem dúvida, mas compensada amplamente pela introdução do chocolate no Ocidente, alimento que os astecas, com muita propriedade, consideravam divino). Para compensar essa restrição de sentido que o verbo sofreu, as chaminés começaram a fumegar e os índios passaram a defumar o pescado — e ninguém saiu perdendo.
Às vezes essa mudança é tão radical que a palavra passa a designar exatamente o contrário do que originalmente significava. Um exemplo já mencionado aqui é temporão, que mereceu uma coluna inteirinha (publicada no vol. 2 de O Prazer das Palavras, na coleção L&PM Pocket). A palavra deriva do Latim temporaneus, que significava “na hora certa”, ou “antes da hora”, falando das chuvas ou dos produtos agrícolas. Em nosso idioma, designava as espécies agrícolas que amadurecem mais cedo que o habitual. Na Bíblia, na tradução clássica de Joaquim Ferreira de Almeida, há um exemplo oportuníssimo: “Temamos, agora, ao Senhor, nosso Deus, que dá chuva, a temporã e a tardia, a seu tempo”. Não é por acaso que o Espanhol, nossa língua irmã, extraiu da matriz latina o advérbio temprano (“cedo”), muito conhecido dos gaúchos que vivem na fronteira com os países do Prata.
Ora, submetido à química misteriosa da evolução lingüística, temporão teve sua abrangência estendida para incluir qualquer evento fora do tempo, sem levar em conta a distinção, outrora importante, entre o antes e o depois. Em conseqüência, os contornos semânticos da palavra ficaram tão imprecisos que sua utilidade ficou seriamente comprometida, pois hoje ela abrange significados diametralmente opostos: uns chamam de temporão o filho prematuro, enquanto outros reservam o termo para designar o rebento que nasce quando o casal há muito deixou de pensar sobre o tema. Para mim, o termo ficou inútil, pois não é possível empregá-lo sem esclarecer, em seguida, qual é o sentido que eu dou a ele.
Esse mesmo fenômeno de erosão vem ocorrendo com literalmente. Fiel à sua origem latina (littera é “letra”), literalmente significa “ao pé da letra, no rigor da letra”. É um advérbio valioso para avisar meu interlocutor que vou empregar determinado vocábulo ou expressão no seu sentido estrito, não no sentido figurado. Numa frase como “A chegada da seleção literalmente parou o trânsito na cidade”, ele serve para indicar que “parou o trânsito” aqui não tem o sentido metafórico que habitualmente atribuímos à expressão (como em “uma morena de parar o trânsito”), mas que o trânsito realmente ficou interrompido. Quando Raul Pompéia diz, em O Ateneu, que os meninos foram arrastados ao gabinete do diretor Aristarco, “onde deviam ser literalmente seviciados”, está nos avisando que o castigo vai ser brutal, mesmo, e que não se trata, aqui, de uma hipérbole (a famosa figura de exagero, do tipo “estou morrendo de calor”, “fui devorado pelos mosquitos”, etc.). Quando usado junto com figurativamente, o contraste deixa ainda mais nítido o seu significado: “João Gilberto nunca se importou de ficar horas no seu canto (literal e figurativamente), repassando as mesmas notas no seu violão”; “Quem desempenha um cargo tão importante sempre terá quem lhe abra portas (literal ou figurativamente)”; “Eu não compro um iPad porque não cabe, literal e figurativamente, no meu bolso”.
Então, um belo dia, como na antiga parlenda, deu tangolomango neste advérbio e ele começou a inverter seu sinal, servindo de reforço, e não de advertência, para figuras de exagero! “Estou com tanta fome que seria capaz de comer um boi, literalmente“; “Ela estava literalmente morta de cansaço e preferiu ficar no hotel”. Aqui o vocábulo deixa de ser um sinal de que as palavras estão sendo usadas no sentido real e passa a indicar exatamente o contrário do que fazia: “Estou com tanta fome que seria capaz de comer um boi, figurativamente“. Se alguém me diz que sua cabeça está “literalmente explodindo”, é tamanho o exagero que fica fácil perceber com que intenção foi empregado o advérbio; no entanto, o mesmo não acontece se me dizem que “o estádio estava literalmente lotado”, pois não posso determinar se é para valer ou se é apenas uma forma de dizer. Lamento que isso esteja acontecendo, pois acho que a língua empobrece um pouco sempre que se apaga uma distinção como essa. Infelizmente não há nada que possamos fazer; o fruto já está envenenado e logo, logo ficará imprestável.
Depois do Acordo:
conseqüência > consequência
lingüística > linguística
Pompéia > Pompéia
[Coluna O PRAZER DAS PALAVRAS – Jornal Zero Hora – 12/03/2011]