Ainda no governo de FHC, ao falar diante de empresários e repórteres na VI Cúpula Econômica do Mercosul 2000, ocorrida no Rio de Janeiro, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, gerou um curioso incidente diplomático-lingüístico. Os integrantes da mesa respondiam à pergunta proposta pelo mediador sobre a conveniência ou não de ser mantida a paridade entre o peso argentino e o dólar. “Se a Argentina deve manter a conversibilidade? Acho que a minha resposta é simples: cabe aos argentinos decidir”, respondeu Malan, numa prudente atitude de isenção diante dos problemas alheios.
Alguns ouviram sim, no lugar de simples, e estava armado um pequeno qüiproquó, que nasceu e morreu mais ou menos nos bastidores da grande imprensa, com direito a desmentidos e a notas de retificação. Renata Lo Prete, a ombudsman da Folha de São Paulo, é quem narrou todo o incidente, comparando, muito bem, duas diferentes maneiras de entender o fato: “Frase de Malan confunde platéia” , disse o Globo, que acrescentou que a confusão havia surgido de “uma palavra mal pronunciada”. Como muitos dos presentes entenderam bem o simples, a ombudsman achou mais adequada a explicação do Correio Braziliense, que falou em “palavra mal ouvida”. Quem está com a razão? O que realmente ocorreu aqui? Quem é o responsável pelo mal-entendido — o Ministro ou os seus ouvintes?
Bem, a resposta já está dada desde sempre: quando alguém entende mal minha minha mensagem, o único, exclusivo, e solitário responsável sou eu, que não a cerquei de todos os requisitos necessários para que ela tivesse sucesso. O que Malan não levou em conta e, por isso, não teve a devida cautela? A dramática superioridade da sílaba tônica de uma palavra sobre todas as demais sílabas, em nossa língua. Em cada vocábulo, a sílaba tônica é um espaço especial, privilegiado, em que os sons estão claramente definidos, iluminados por uma intensa luz hospitalar. Ali tudo é claro, todas as diferenças ficam aguçadas, todos os traços são perceptíveis. Nas sílabas que ficam antes da tônica — ou, pior ainda, nas que ficam depois dela — uma espécie de véu começa a toldar a nitidez daquilo que, na posição imperial da tônica, estava tão claramente definido. Um exemplo bem simples: só na posição tônica você vai ouvir a diferença entre um E ou O aberto e um E ou O fechado; nas sílabas átonas, o Português só apresenta essas vogais fechadas. Em porta, todos ouvimos /ó/; em todos os seus derivados, contudo, como a sílaba /por/ deixou de ser tônica, só vamos ouvir /ô/: porteiro, portaria, portal. Em certo, da mesma forma, podemos ouvir o /é/; nos derivados, porém, como a sílaba tônica passou a ser outra, só ouvimos /ê/: certeiro, certeza, acertar.
Além disso, quando falamos, levamos a pronúncia da palavra até a sua sílaba tônica; o que vier depois vai mais ou menos se diluir, sem que isso chegue a atrapalhar a quem nos ouve. Que o leitor preste atenção à sua volta; ouça como pronunciam médico, e verá que depois do /mé/ você vai ouvir, talvez, um /di/ abafado, e quase nada do /co/ — e não vai fazer falta. Isso explica por que, na contagem das sílabas poéticas que fazíamos no colégio (decassílabos, dodecassílabos — lembra?), computávamos apenas até a sílaba tônica da última palavra, porque o resto não conta. “Minha terra tem palmeiras” tem sete sílabas (mi/nha/te/rra/tem/pal/mei), igual a “Não gorjeiam como lá” (não/gor/jei/am/co/mo/lá) — /mei/ e /lá/ são as duas últimas tônicas de cada verso.
Isso pode levar a confusões tão prejudiciais que fez a Marinha Brasileira redesenhar uma palavra tradicional para evitar problemas em suas operações; se não estou enganado, isso se deu por volta da Guerra do Paraguai. A antiga distinção entre bombordo (o lado esquerdo da embarcação) e estibordo (o lado direito) mostrou-se inoperante em situações de batalha, uma vez que as ordens gritadas no meio da fuzilaria e da canhonada deixavam ouvir apenas a tônica, que é /bor/ em ambos os casos. Considerando a importância de que os maquinistas e timoneiros entendessem as ordens dadas, nossa Marinha sabiamente inovou: pegou estibordo, reordenou seus elementos e saiu-se com um boreste, agora funcional, porque as duas tônicas se bastam para distingui-las (bomBORdo, boRESte).
A frase de Malan ignorou este perigo. “Acho que minha resposta é SIMples: cabe aos argentinos decidir” foi ouvida como “acho que minha resposta é SIM: cabe aos argentinos decidir”— como se vê, uma frase de estrutura perfeitamente aceitável e, pior, num contexto em que essa resposta era uma das hipóteses cabíveis. O azar do Ministro foi que a tônica de simples é exatamente o nosso sim… Se tivesse dito “minha resposta é esta:… “, ou “minha resposta é só uma:…”, ou “minha resposta é simplesmente que …” — ou qualquer outra das infinitas escolhas que temos a nosso dispor, não haveria mal-entendido algum. Mas nosso Ministro, talvez atraído pelo abismo (o que nos leva a indagar sobre as estranhas motivações de nossas escolhas lingüísticas), terminou escolhendo o simples. Deu no que deu.
Depois do Acordo: lingüístico > linguístico
qüiproquó > quiproquó
platéia > plateia