Tales, um dos Sete Sábios da Grécia — quem conta é Aristóteles — afirmou que “tudo está cheio de deuses”. Cabe aos filósofos a infindável aventura de indagar o sentido dessa e de muitas outras frases; penso que não estarei cometendo uma heresia, contudo, se eu a utilizar como uma perfeita introdução para o assunto que discuto neste artigo: a presença da mitologia clássica em nossa linguagem. A civilização greco-romana forma, juntamente com a tradição judaico-cristã, os dois pilares daquilo que chamamos de Ocidente, e não é de espantar que os deuses e heróis de sua mitologia — especialmente a versão romana — estejam presentes no léxico da maioria das línguas ocidentais, muitas vezes escondidos em palavras com que convivemos inocentemente.
jovial — Para nós, é um adjetivo que significa “alegre, folgazão, divertido, espirituoso”. Aqui está presente Júpiter (ou Jovis), o rei dos deuses, chamado de Zeus pelos gregos. Sua entrada na língua se deu através das duas irmãs, a Astrologia e a Astronomia, que eram muito mais próximas na Antiguidade Clássica do que hoje. Os astrônomos romanos só conheciam — além da Terra, do Sol e da Lua — os cinco planetas observáveis a olho nu, todos batizados com nomes do panteão divino: Júpiter, Mercúrio, Marte, Vênus e Saturno. Ao que parece, o batismo desses planetas seguiu mais ou menos um critério de comparação de sua aparência e comportamento com as características de cada divindade. Mercúrio ganhou o nome do veloz mensageiro dos deuses por causa da rapidez com que se move; Júpiter recebeu o nome do deus supremo do Olimpo por seu brilho intenso e por sua trajetória peculiar, mais lenta e majestosa que a dos planetas mais próximos. E assim por diante.
Os Romanos acreditavam que as pessoas nascidas sob a influência de um planeta apresentariam as características do deus correspondente. Júpiter era classificado pelos astrólogos como feliz, exuberante, alegre; daí o adjetivo jovialis, do Latim tardio, pai de nosso jovial e avô de jovialidade, jovializar, jovializante. Friso que este vocábulo e seus descendentes nada têm a ver com jovem e juventude, que vêm de família completamente diferente; no entanto, a grande semelhança entre os dois radicais (e o desconhecimento da origem mitológica de jovial) está fazendo muita gente usar um pelo outro! Todo dia encontro artigos que falam de pele jovial, roupa jovial, corte de cabelo mais jovial, onde está clara a referência a jovem. Evolução? Não mesmo; a perda de uma diferença na língua sempre será um momento de luto, porque nos empobrece. Mirem a clareza do bom Morais: “Jovial — amigo de rir, e fazer rir”! E o Machado, então? O exemplo que trago, do conto Uma Noite, fala mais que qualquer dicionário: “Isidoro não se podia dizer triste, mas estava longe de ser jovial“.
Marcial – Talvez por causa de sua característica cor avermelhada, o planeta Marte ganhou o nome do deus da Guerra. Marte era, na religião romana primitiva, um deus ligado à agricultura, que presidia as tempestades e os fenômenos meteorológicos, mas não demorou para ser identificado a Ares, o deus da Guerra do Olimpo grego. De seu nome, em Latim — Mars, Martius (lê-se /március/) — veio também o mês de Março (dedicado a ele), o nome Márcio e o adjetivo marcial, que significa, basicamente, guerreiro. Numa região ou país que está em guerra pode ser decretada a lei marcial; crimes militares são julgados por uma corte marcial; as bandas marciais de nossos colégios são formadas de tambores e instrumentos de sopro, à semelhança das bandas militares que marcavam o passo das evoluções das tropas de antigamente. Exatamente por esse significado guerreiro, belicoso, é que muitos mestres acham inadequada a denominação de artes marciais para algumas variedades orientais de luta desarmada, que geralmente se baseiam em princípios pacifistas e de autocontrole.
Como não canso de citar Machado, relembro uma crônica, em Balas de Estalo (3 de junho de 1885), em que ele zomba de um político nordestino que recebeu de favor a patente de tenente-coronel:
“Faro, estás tenente-coronel. Podes crer que não há graça mais bem merecida. […] Estás vendo, Faro? é o prêmio da modéstia, do zelo, do amor aos princípios, e principalmente, é o reconhecimento de que possuis o ar marcial. Não negues, Faro; tu tens o ar marcial. Vai ali ao espelho. Não és Napoleão, mas ninguém que te veja pode deixar de exclamar: “Ou eu me engano, ou este homem acaba tenente-coronel”. E estás tenente-coronel, Faro. Não duvides; relê a carta imperial. Olha o chapéu que o Graciliano te mandou da corte. Não me digas que não tens batalhão que comandar; o teu ar marcial fará crer que tens um exército.”
Não raro nossos poetas (Camões, Bocage, Castro Alves, entre outros) chamam Marte pelo nome arcaico de Mavorte (no Latim, Mavors, Mavortis). Não no Português, mas em suas irmãs neolatinas, ao deus Marte é dedicada também a terça-feira: mardi, no Fracês; martes, no Espanhol; martedì, no Italiano.
atlas — Como estamos vendo, nosso idioma está repleto de palavras vindas do Grego e do Latim que evocam aquela notável tapeçaria de mitos e lendas que era a religião dos gregos e romanos. Seus deuses, heróis e criaturas fantásticas atravessaram esses últimos três mil anos e continuam presentes no léxico da maioria das língua ocidentais, muitas vezes escondidos em palavras com que convivemos inocentemente.
Quem que não enxerga essas relações simplesmente não sabe o que está perdendo, pois é sempre fascinante descobrir as histórias que ainda vivem por trás de palavras aparentemente comuns. Por acaso nossa língua não fica mais interessante quando sabemos que o mês de janeiro tem esse nome porque era consagrado a Janus, um deus que tinha duas faces e que podia, portanto, olhar ao mesmo tempo o ano que terminava e o que estava começando? Ou que, ao falarmos em cereais, estamos prestando uma homenagem à deusa Ceres, que presidia as plantações e as colheitas? Ou que um museu é um prédio dedicado às Musas, divindades que presidiam as artes e o conhecimento? Ou que o cachorro do Mickey, o Pluto, tem o nome de um deus romano, em homenagem ao qual também foi batizado o planeta Plutão?
Atlas era um dos titãs que lutou contra Zeus pelo controle do Olimpo. Derrotado, Zeus o condenou a ficar sustentando o céu sobre os ombros, mantendo-o assim afastado da terra. Por facilidade de representação, contudo, os artistas preferiram figurá-lo com o globo terrestre nas costas. Quando o famoso cartógrafo Mercator, no séc. XVI, colocou na capa de sua coleção de cartas geográficas a figura de Atlas, este nome associou-se para sempre a qualquer volume que contenha uma coleção de mapas.
eco — A ninfa Eco, por ter enganado Hera, foi condenada por esta poderosa deusa a um tipo muito peculiar de mutismo: ela não podia dirigir a palavra a ninguém, mas apenas repetir as últimas palavras que ouvisse. Foi nessa condição lamentável que ela conheceu e se apaixonou pelo belíssimo Narciso, que não gostava de mulher e a repeliu, indiferente. Tal foi a sua tristeza que foi secando e definhando, até que se transformou em pedra, só restando a sua voz, que até hoje nos responde quando gritamos nos vales ou nas cavernas da montanha.
hermético — Vem do nome do deus Hermes, que foi cultuado pelos alquimistas com o nome de Hermes Trimegisto, a quem atribuíam uma série de textos secretos, que versavam sobre ciências ocultas e só podiam ser compreendidos pelos raros iniciados. Ainda hoje usamos o termo para textos de difícil compreensão; no dia-a-dia, entretanto, a partir dessa noção de texto fechado e impenetrável, o vocábulo hermético serve usualmente para qualificar um recipiente que está completamente selado.
hipnotismo — Na Grécia, Hipnos era o deus do sono, pai de Morfeu, o deus dos sonhos. Seu nome foi usado para designar aquele estado de sonolência que está associado à hipnose. Os medicamentos que induzem o sono são também denominados de hipnóticos.
néctar — Os deuses do Olimpo não consumiam os mesmos alimentos que os humanos, mas satisfaziam-se com duas substâncias imortais, inexistentes no mundo dos homens: comiam a perfumada ambrosia e bebiam o néctar, uma bebida especial e revigorante. O vocábulo passou a ser usado para designar o suco concentrado das frutas ou o líquido que as abelhas colhem das flores para o fabrico do mel. Às vezes é simplesmente empregado como uma forma de elogiar qualquer bebida saborosa.
pânico — Esse sentimento vem de Pan, aquele deus híbrido com pequenos chifres na cabeça e com corpo de bode da cintura para baixo, que vivia nos bosques e nos campos correndo atrás das ninfas. Os gregos atribuíam a ele a forte sensação de medo que acometia os que passavam por lugares desertos, em que o menor ruído poderia indicar que o deus estava ali à espreita. Hoje o termo indica aquele medo incontrolável e irracional que às vezes nos ataca e nos invade com uma vontade irresistível de fugir.
sirene — O nome é uma variante de sereia, monstruosa ave com cabeça de mulher que Homero descreve na Odisséia. As sereias viviam numa pequena ilha no meio do mar e usavam seu canto para atrair os navegantes, que eram ali devorados. Só bem mais tarde a mitologia celta imortalizou a figura popular da sereia boazinha, metade mulher, metade peixe, bem diferente das terríveis criaturas que Ulisses enfrentou. Em Inglês, como aqui, o mesmo termo siren é usado para a entidade mitológica e para o som agudo e estridente das ambulâncias e viaturas policiais.
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