As redes sociais (e os jornais menos avisados) andam ameaçando os pobres brasileiros com uma nova (e radical) reforma ortográfica. Não se assustem; trata-se apenas da proposta pessoal de um professor que pouco ou quase nada entende do riscado.
Quando o doutor Simão Bacamarte construiu o seu hospício, conta-nos Machado, “de todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos… Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito”. Felizmente naquela época ainda não se manifestavam essas pobres mentes que de vez em quando saem do anonimato para anunciar uma solução mágica para nossa ortografia; caso contrário, tenho certeza de que nosso bom alienista os mandaria internar na Casa Verde.
Como certos fenômenos meteorológicos, aparecem e desaparecem ciclicamente. Sentem-se iluminados por uma inspiração genial e inédita; com aquele olhinho brilhante que tão bem conhecemos, anunciam uma verdade que ninguém, antes deles, em todo o planeta ― nem os filólogos, nem os linguistas, nem os lexicógrafos do mundo inteiro ― ninguém, repito, havia percebido: para eliminar as dificuldades inerentes à escrita, basta criar um sistema em que a cada letra corresponda um só fonema! Puxa, que simples! Como não são especialistas no tema, pouco se lhes dá que nenhum país tenha adotado essa ortografia fonêmica ou que os linguistas reprovem unanimemente essa ideia. Para eles, nada disso conta; afinal, alguém que viu a luz não deve dar ouvidos aos que vivem na treva.
O problema é que esta mesma ignorância que os deixa felizes impede que entendam a real importância da ortografia. Ela é que deixa visível o DNA das palavras; ao realçar as semelhanças e diferenças entre elas, agrupa-as em famílias que nosso cérebro pode reconhecer. A grafia diferente do fonema /s/ em obsceno, obcecado e obsessão nos informa que se trata de três conceitos distintos; escrever essas três palavras da mesma forma levaria, em poucas gerações, a um mingau semântico irreversível. Também é por isso que não se pode eliminar o H inicial (uma das vítimas favoritas desses ortógrafos amadores): além de assinalar a família a que a palavra pertence (hombridade está ligada a homem, não a ombro), liga nosso idioma à civilização greco-romana, da qual felizmente fazemos parte. Comparem hora (Lat.), hour (Ing.), heure (Fr.), hora (Esp.) e hora (Port.), e vejam como fica desfigurado o pobre ora, do Italiano, a única língua ocidental que suprimiu o H… Pois fiquem sabendo que todas as sociedades civilizadas já fizeram essa conta: é melhor conviver com a complexidade da ortografia, com todos os problemas e custos que isso traz, do que destruir a própria essência de nossa apreensão da realidade.
Além disso, há muitos anos a professora Mira Mateus, falando acerca dessas propostas baseadas no “escrever como se fala”, nelas apontou uma contradição essencial que as faz invariavelmente morrer no ovo: o mundo da ortografia precisa ser estável, organizado e uniforme, em contraste com o mundo da fala, ambiente sempre vivo e irrequieto, habitado por incontáveis maneiras de pronunciar as palavras, que se modificam ao sabor dos anos que passam ou da região ou país em que vive o falante.
Digo tudo isso porque uma dessas sumidades se infiltrou na comissão do Senado encarregada de propor ajustes ao Novo Acordo e anda pregando a mesma “simplificação” pedestre que era defendida, em 1940, pelo famoso general Bertoldo Klinger. Trata-se do professor Ernani Pimentel, nome totalmente desconhecido do mundo acadêmico, autor de apostilas para concurso ― “com mais de 10.000 páginas publicadas”, diz seu saite, que parece substituir a qualidade pela quantidade. A comissão do Senado foi criada para sugerir aperfeiçoamentos ao Acordo assinado pelos países lusófonos; ele acha pouco, e quer botar tudo abaixo! Alguns jornalistas apressados caíram no conto do vigário e apresentaram suas ideias como se fossem oficiais (desmentidas pelo senador responsável; afinal, a comissão não tem poder para propor um novo acordo internacional). O nome do professor Pasquale, outro membro do grupo técnico, apareceu várias vezes nos jornais que noticiaram esta falsa “nova reforma”. Não o conheço pessoalmente, mas quase posso jurar que seu nome entrou aqui como o de Pilatos no Credo; pelo bom senso e boa formação que demonstra no que escreve, dificilmente iria embarcar nessa canoa furadíssima.
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