O ABC da Língua Culta

Sai, finalmente, o tão esperado “ABC da Língua Culta”, de Celso Pedro Luft. O Doutor não hesita um só segundo: “É o mais importante lançamento do ano!”.

 

1Para os que se interessam, como nós, pela língua portuguesa, esta é, sem dúvida,  a mais importante notícia do ano: a Editora Globo acaba de lançar o tão esperado ABC da Língua Culta, do nosso insubstituível professor Luft. O professor Voltaire Schilling, meu grande amigo, ao ser informado da notícia, apenas exclamou, entre encantado e boquiaberto: “Quinhentas páginas? Do Luft? Que maravilha!”. E é sobre isso que venho falar.

Não faz muito tempo, dediquei duas colunas inteiras à etimologia e ao significado da palavra aluno. Algumas leitoras mais sensíveis ficaram impressionadas diante do tom ríspido, quase desaforado, que adotei naqueles textos, como se eu estivesse (disse uma delas, bem-humorada) “aos tapas e safanões com algum desafeto invisível”. Pois estava mesmo, cara leitora; aquela era uma velha rixa que resolvi acertar de uma vez por todas, cansado de assistir à detratação sistemática que alguns setores pedagógicos vêm fazendo às duas figuras que realmente importam na educação — o professor e o seu aluno. Que aqueles teóricos defendam lá suas idéias, é direito assegurado pela Constituição mas não me venham, por favor, falsificar a etimologia de uma palavra tão nobre para justificar aquela ficção lamuriosa que defendem (para eles, o termo aluno é ofensivo porque significaria “sem luz”, blablablá, blablablá). E pensar que temos de escrever artigo sobre artigo (já se publicaram dezenas, todos denunciando a mesma impostura) para esclarecer uma questão que poderia (e deveria) ser encerrada com uma simples consulta a qualquer bom amansa-burro…

Na ocasião, declarei, com muito orgulho, que fui e ainda sou aluno de Celso Pedro Luft, professor e verdadeiro mestre, cuja obra deixou uma marca indelével no estudo e no ensino do Português no Rio Grande do Sul um caráter único, peculiar, que não se encontra nos demais estados (prometo, prezado leitor, que não vou fazer nenhuma declaração ufano-separatista). Teorias sociológicas à parte, isso não teria ocorrido sem ele, sem suas virtudes pessoais. O professor Luft foi o único gramático de renome que reuniu a formação sólida de um filólogo clássico, a atitude eternamente investigativa de um cientista, a valiosa experiência de um professor e o bom-senso e a tolerância de um homem sábio. Os outros estados viviam uma guerra civil gramatical, declarada entre os lingüistas (que se dedicam a descrever o idioma e a entender o seu funcionamento) e os prescritivistas (gramáticos autoritários, caga-regras intolerantes, juízes absolutos do que é certo ou errado). Os primeiros se entrincheiraram nas universidades e se recolheram à pesquisa, enquanto os últimos trataram de assumir o poder dos livros didáticos, das bancas de concursos públicos e dos consultórios gramaticais. Como parte de sua estratégia bélica, cada exército lutava para dominar o ensino do Português e, assim, perpetuar seus ideais. “Solta a linguagem!”, diziam uns; “Prende!”, diziam os outros (este conflito, aliás, ainda continua vivo em muitos corações e mentes por aí…).

Pois nós tivemos muita sorte. A presença de mestre Luft por aqui inibiu qualquer beligerância. Os cães raivosos do “é proibido”, do “absolutamente errado”, do “não pode” foram lamber as feridas no canil; os lingüistas mais serelepes, os libertários pós-Woodstock, defensores do “pode tudo”, perderam um pouco de seu ânimo juvenil ao encontrar pela frente não os adversários sectários de sempre, mas a figura serena de um estudioso de mente aberta, que estava disposto a entendê-los e que e é aqui que bate o ponto conhecia nossa língua muito mais do que todos eles reunidos. A superioridade de mestre Luft nesta área era tão flagrante que jamais se soube de alguém que a contestasse. Para que o leitor julgue o quanto isso é excepcional, saiba que, segundo o saudoso Jose Pedro Rona (mais um professor!), nada é mais terrível, na natureza, que a briga de dois cachalotes – exceto, é claro, a discussão entre dois gramáticos….

Ninguém conseguiu, como Luft, fazer a mediação entre o estudo científico da linguagem e a gramática escolar do Português. Nunca pretendeu ombrear com os especialistas em Lingüística; mantinha com eles, aliás, uma relação absolutamente cordial, acompanhando com entusiasmo e admiração verdadeira o trabalho que eles desenvolviam. Não se filiou a nenhuma escola em particular, pois seu interesse era outro: aproveitar o poder explanatório das novas teorias para melhor entender e, assim, melhor explicar a estrutura e o funcionamento do idioma. Aproveitava o que lhe parecia útil. Este ecletismo, que certamente deixou um ou outro acadêmico de nariz torcido, era consciente e intencional:  “Procuro deitar as redes onde me palpita haver peixe”, disse ele, textualmente, no prefácio da Moderna Gramática Brasileira.

2Na coluna anterior, os leitores me viram anunciar, com o maior entusiasmo do mundo, a chegada às livrarias do tão esperado ABC da Língua Culta, do professor Celso Pedro Luft. Publicado em fatias ao longo de vários anos, nas páginas do Correio do Povo, o ABC, que agora vem à luz na forma de um robusto volume de mais de quinhentas páginas, é, sem dúvida, o lançamento mais importante do ano.

Para que o leitor mais jovem possa avaliar a contribuição que Luft deu a este estado (aqui, com inicial minúscula, como deve ser e como ele sempre ensinou), fique sabendo que ele realizou a proeza inimaginável de manter, ao longo de mais de dez anos, uma coluna diária sobre os fatos de nosso idioma. Diária, meu caro leitor! De 1970 a 1984, todos os dias, ano após ano, onze meses por ano, lá estavam elas, incansáveis. Mantenho sempre à mão a caixa de sapatos (na verdade, a caixa de um par de botas campeiras) em que guardo as colunas que recortei. Muitas se extraviaram em algum distante caminhão de mudança, mas ainda me restam duas mil, pouco mais que a metade. Duas mil! e todas elas colunas densas, ricas de exemplos e de explicações valiosíssimas. As minhas estão arrumadas em ordem crescente; a última leva o número 3885 e discorre sobre o vocábulo “reiuno”, a pedido de um CTG de Veranópolis. Era assim mesmo; choviam consultas de toda a parte, de todas as cores e credos, e, aos poucos, O Mundo das Palavras (este era o nome da coluna) foi se tornando o oráculo de todos nós, o lugar onde os aflitos e os curiosos sabiam que iam encontrar as respostas que procuravam.

Como o professor Luft desenvolveu este longo trabalho antes do surgimento da internet (que só chegou por aqui nos anos 90), este vastíssimo material acabou adquirindo uma curiosa estrutura cíclica e, à primeira vista, repetitiva: assim como os golfinhos mergulham para reaparecer lá adiante, certas perguntas apareciam aqui para voltar a aparecer acolá, anos ou meses mais tarde. A razão fica muito clara, se compararmos os recursos de hoje com os que estavam disponíveis naqueles anos heróicos: num saite como o Sua Língua, o material é cumulativo; aqui convivem, lado a lado, todos os artigos que publiquei até hoje do primeiro, de oito anos atrás, ao último, postado na semana passada. Resposta dada é resposta arquivada, que ficará aqui para sempre, disponível para qualquer pessoa que venha a ter uma dúvida semelhante. Nosso mestre Luft, no entanto, que só contava com o jornal, tinha de voltar ao mesmo tema cada vez que um leitor o trouxesse à baila, apesar de já ter escrito sobre ele várias vezes. Era um verdadeiro trabalho de Sísifo. Por exemplo e considerando que minha coleção está bastante incompleta , o emprego dos sufixos “eano” e “iano” foi explicado nas colunas 26, 158, 699, 2389 e 3638; a locução haja vista compareceu nas colunas 156, 382, 2407 e 3702; o gênero de soja, nas de número 58, 644 e 985. Embora as sucessivas reapresentações jamais sejam simples cópias das respostas anteriores (porque ele, incansável pesquisador, sempre dava um jeito de enriquecê-las com exemplos novos e argumentos mais recentes), esse caráter reiterativo impede que o material seja automaticamente transformado em livro, tornando necessário um trabalho de consolidação das diferentes versões. O gigantesco texto acumulado ao longo de quatro mil artigos tornou-se, assim, uma verdadeira montanha aurífera que esconde, em seu interior, vários livros possíveis. Dois já foram publicados pela Editora Ática O Romance das Palavras e A Vírgula , e muitos outros ainda estão lá dentro, prontos para ser extraídos.

Existiam, no entanto, espalhadas no meio desses milhares de colunas, aquelas a que o próprio Luft dava o título especial de “O ABC da Língua Culta”; em vez das tradicionais respostas aos leitores, estas já nitidamente organizadas para publicação em forma de livro traziam, em ordem alfabética, uma relação sistemática das questões que normalmente nos fazem hesitar, na hora de escrever. Era uma obra completa, servida como afirmei acima em fatias; faltava apenas encontrar o editor que as reunisse num volume e as transformasse em livro. No meio de vários outros projetos, no vaivém da existência, contudo, o tempo passou rápido demais, e o professor Luft nos deixou sem ver o ABC publicado. Pois agora, finalmente sob a orientação cuidadosa da Lya Luft , a Editora Globo finalmente completou o ciclo que tinha ficado em suspenso por mais de dez anos e nos deu, a todos os que compartilham o prazer pelas palavras, este verdadeiro presente. (continua aqui)

Depois do Acordo:

idéia, heróico, lingüista e lingüística > ideia, heroico, linguista e linguística.