O feminino nos diplomas

Foi editada, há alguns dias, uma leizinha que torna obrigatória a distinção masculino/feminino nos diplomas e certificados de todas as instituições de ensino do País. Embora ela represente mais um pequeno degrau que subimos em direção à igualdade de gêneros, sua consequência para nosso idioma, ao contrário do que muita gente andou apregoando por aí, é igual a ZERO.

 

Há coisa de um mês entrou em vigor a Lei 12.605, que torna obrigatória a diferenciação masculino/feminino nas profissões e graus que constam nos diplomas e certificados expedidos por qualquer instituição de ensino desta incomparável Pindorama. Para uma leitora que perguntou se esta lei mudaria alguma coisa no uso que fazemos do idioma, sou obrigado a dizer, com franqueza, que não muda nada, ou pouco mais que nada. É uma lei pequenina, tanto no texto quanto nos efeitos: a partir de agora, se uma filha minha se graduar em Arquitetura ou Enfermagem, terá a merecida satisfação de ver que seu diploma não lhe confere o antipático título de “Arquiteto” ou de “Enfermeiro”, como ainda fazem muitas instituições de ensino bem conhecidas, mas sim o de “Arquiteta” ou “Enfermeira”.

É só isso? É. Do ponto de vista sociológico, a lei até poderá contribuir um pouco para arejar a burocracia acadêmica, geralmente tão conservadora nestas questões de gênero; do ponto de vista lingüístico, no entanto, ela faz tanto efeito quanto aplicar clister em defunto. Como ela dispõe apenas sobre a forma de redigir o texto dos diplomas e certificados, dirige-se exclusivamente aos secretários de escola, que os emitem, e não a simples mortais como nós, que os recebemos. Pode ser que a lei provoque alguma comoção nos departamentos de registros das universidades, que terão de abandonar sua inexplicável resistência em usar os femininos que a língua põe à nossa disposição — mas em nada vai afetar nossa linguagem usual, que felizmente sempre foi muito mais democrática que a linguagem petrificada dos diplomas.

Acredite, leitora: neste quesito, somos muito mais avançados que os franceses. Se sociedade brasileira ainda não oferece oportunidades idênticas aos dois sexos, ao menos nossa cultura sempre distinguiu o gênero das profissões. Aqui, no mundo real, a mulher que trabalha é professora, médica, ministra, técnica, reitora ou catadora de lixo, enquanto lá, no hexágono francês, ainda se cultiva a estranha tradição de empregar nomes exclusivamente masculinos. As combativas feministas francesas tentam criar e divulgar as formas femininas correspondentes, mas ainda é comum empregarem le ministre, le médecin ou le peintre tanto para homens quanto para mulheres. Sem conhecer o contexto, uma simples nota na coluna social como “le gendarme s’est marié en robe blanche”  vira um verdadeiro enigma, já que não sabemos (estamos no séc. 21, gente!) se foi A ou O policial que casou de vestido branco.

Esta lei vem se juntar a outra bem mais antiga, quase tão inócua quanto ela: em 1956, o presidente Juscelino assinou a Lei 2.749, ainda vigente, que torna obrigatório o uso do gênero feminino (quando houver) na denominação dos cargos públicos ocupados por mulheres. Seu alcance também é limitadíssimo, pois a ela só estão sujeitas “as repartições da União Federal”, as autarquias e os serviços “cuja manutenção dependa, totalmente ou em parte, do Tesouro Nacional” — ou seja, é uma norma interna do serviço público, semelhante à que estabelece o uso de gravata ou à que define o tamanho oficial dos envelopes. Em outras palavras, leitora, ela nada tem a ver com a linguagem que eu e você usamos.

Ora, por que os legisladores, nos dois casos, reduziram tanto o âmbito de aplicação de suas normas? Por que não tornaram a obrigação extensiva a todos os brasileiros? É simples: porque teriam assinado um atestado de burrice e seriam objetos de chacota eterna, aqui e fora de nossas fronteiras. Há muito tempo o Ocidente aprendeu que é o consenso dos falantes que regula o uso de uma língua, e que não há poder instituído que possa controlá-lo, como ilustra o conhecido episódio que ocorreu com Sigismundo, imperador do Sacro Império Romano-Germânico: durante o Concílio de Constança,  em 1414, ele empregou como feminina a palavra cisma (que era neutra, no Latim, como é masculina, hoje, no Português). Ao ser advertido do erro, respondeu que, como imperador, ele podia muito bem decidir que cisma tinha trocado de gênero — ao que se levantou um arcebispo e lançou-lhe nas barbas a famosa frase “Caesar non supra grammaticos” (literalmente, “César não está acima dos gramáticos”), que deve ser lido como “O Estado não tem poder sobre as palavras”.

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