O livro do MEC (2)

A Escola precisa falar claramente com a Linguística: “Fico-lhe muito grata por sua importante contribuição, amiga, mas vamos esclarecer uma coisa: o meu compromisso é com a Cultura”.

Encerrei a coluna anterior declarando que a reação contra o livro do MEC não era um repúdio ao saber dos lingüistas, mas sim um recado que eles insistem em não ouvir: não é isso o que esperamos da Escola. Como era de imaginar, minha frase provocou o aplauso de muitos leitores, a vaia de outros tantos e a indignação declarada de alguns, que se disseram revoltados com a insinuação feita por mim, nas entrelinhas, de que os lingüistas não sabiam exatamente como deve ser o ensino da língua. Insinuação? Mas eu nada insinuei, caro leitor, pois esse não é o meu feitio; na verdade, eu disse isso — e com todas as letras, a começar pela epígrafe: eles continuam sem entender (ou admitir) o tratamento que a Escola, por sua própria finalidade e natureza, deve dar ao idioma. Acho oportuno, portanto, traçar desde já uma linha separando esses dois campos de atividade, pois o ensino da Língua Portuguesa, embora às vezes caminhe junto com a Lingüística, tem objetivos e interesses completamente diversos.

A Lingüística é uma ciência que procurar entender, em toda a sua infinita variação, o fenômeno da linguagem; seu horizonte abrange a totalidade do planeta, pois cada língua, cada dialeto traz sua contribuição para a compreensão desta que é a mais complexa atividade humana. Para o lingüista, portanto, afirmar que uma língua é mais fácil ou mais completa do que outra é tão absurdo quanto, para um biólogo, afirmar que o leão é mais bem construído que a girafa ou que o ronco do bugio é mais eficiente do que o grasnar do pato. Ele não avalia, não critica, não faz juízo de valor — ele descreve, compara, analisa e tenta entender. Para ele, como para o biólogo, não há certo, nem errado — há o natural, o orgânico, o espontâneo.

A Escola, bem ao contrário, é uma instituição criada e mantida pela sociedade para  assegurar, de uma geração para outra, a transmissão de uma memória cultural comum, sem a qual, como o homem percebeu há milênios, não há comunidade ou civilização que sobreviva. Em qualquer regime, portanto — seja ele democrático ou não —, ela vai ser obrigada a proceder a uma seleção dos conhecimentos e dos valores que os seus alunos deverão compartilhar; cabe a ela, em nome da sociedade que representa, determinar o que é pertinente (e o que não é) em História, em Matemática, em Química,  em Literatura e, muito especialmente, em Língua Portuguesa, sem dúvida uma das disciplinas em que mais se faz sentir esse incontornável caráter político da instituição.

A Escola sabe — graças ao trabalho dos lingüistas, aliás — que em nosso território convive uma grande diversidade de “dialetos”, de formas de dizer e de falar, característicos de determinadas regiões, faixas etárias, classes sociais ou profissões — e, exatamente por isso, julga necessário difundir e consolidar uma língua culta padrão (standard, em Inglês), comum a todos, a qual, sem pretender anular ou substituir as demais variedades, sirva de fator de coesão do tecido social e cultural do país. Este padrão, predominantemente escrito, vai inevitavelmente privilegiar, entre as variedades atualmente praticadas no país, aquela que, por reduzir ao máximo as diferenças e idiossincrasias, mais se aproxima de uma espécie de Português consensual; criticá-lo por ser a variedade usada pela “classe dominante”, como fazem alguns lingüistas de esquerda, é tomar a causa pelo efeito: ele não é o melhor porque foi adotado pelas “elites”, mas, ao contrário, foi adotado pelas “elites” porque é um instrumento admirável, que vem sendo polido e aperfeiçoado ao longo de séculos, adquirindo, descontadas pequenas diferenças, uma estabilidade impressionante.

Aqui a sociedade faz, porque precisa fazer, algo que a Lingüística jamais faria: determinar que uma das opções é preferível às outras (dizer que a estrutura de um cavalo é melhor que a de um cabrito não tem o menor sentido para um cientista que estuda os seres vivos, mas tem todo o sentido do mundo para quem precisa usar o animal como montaria). É uma escolha essencialmente cultural, e a tarefa de difundi-la universalmente é entregue à Escola. É uma tarefa de Hércules, e é para isso — e só para isso — que nós, os professores de Português, existimos. Podemos transmitir em aula uma visão crítica deste padrão e da nomenclatura que teremos de usar para falar sobre ele (mais sobre isso depois), mas simplesmente não temos o direito de não ensiná-lo a nossos alunos. Os que aprendem a usar a língua escrita culta (que, como veremos, não está engessada por um conjunto imutável de princípios retrógrados, como apregoa solertemente a contrapropaganda) têm a liberdade de optar por ela sempre que quiserem expressar-se de conformidade com os parâmetros de aprovação social ou atingir o maior número possível de leitores, estejam eles a 4 mil quilômetro ou a 300 anos de distância. Os que não aprendem não têm opção alguma, a não ser carregar o pesado fardo da exclusão social a que foram condenados em nome de duvidosos “princípios científicos”. (Continua)

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