O nome das coisas

Como se chamam aqueles três dedos do pé que ficam entre o dedão e o minguinho? Você sabe? E qual é o nome daquelas pequenas células que recheiam os gomos da laranja ou da tangerina? Você sabe?

Depois que aprende a falar, a criança leva certo tempo até perceber que nem todas as coisas que a cercam têm um nome. Às vezes, a constatação deste fato atinge a pequena criatura como um verdadeiro choque existencial, como pude testemunhar, certa feita, na casa de um amigo meu. Sua filhinha de cinco anos, que acabava de aprender os nomes dos dedos da mão, divertia-se em repetir a eterna listinha do fura-bolos, pai-de-todos, seu-vizinho, etc., enquanto nós dois, o pai dela e eu, mateando, vigiávamos uma bela paleta de porco que assava na churrasqueira. Lá pelas tantas, porém, a pequena interrompeu sua falinha para nos perguntar como se chamam os dedos do pé. Meu amigo fugiu miseravelmente da raia, a pretexto de procurar o sal grosso, e ela voltou os olhos para mim, convencida, na sua doce inocência infantil, de que um adulto como eu deveria conhecer a resposta a essas perguntas essenciais da existência.

Ora, soubesse eu naquela época o que hoje sei sobre as crianças, teria dito que eu precisava procurar no Grande Livro dos Pés, ou que ela tinha o direito de batizar os seus dedinhos assim como fazia com suas bonecas, e ela teria ficado feliz e satisfeita. Infelizmente, eu era ainda muito verde e me limitei a informar didaticamente à baixinha que nem tudo neste mundo tem um nome, e que entre o dedão e o minguinho vivem três dedos intermediários que ficarão anônimos para sempre porque não representam símbolo algum, nem desempenham individualmente (que eu saiba) funções tão especializadas quanto furar um bolo ou matar um piolho. Não sei bem o que se passou naquela alminha, mas, pelo olhar magoado que me lançou, percebi que tinha cometido uma indiscrição tão desastrada quanto revelar o segredo do coelhinho da Páscoa.

Por não conhecer os limites da linguagem, ela tinha certeza de que acharia o que estava procurando; eu, por conhecê-los, muitas vezes deixo de procurar o que teria achado, se o fizesse. Andei, por exemplo, muito tempo no rastro de uma palavra perdida: pegue o leitor uma bergamota (serve também uma laranja), descasque-a e destaque um de seus gomos. Dentro deste gomo há milhares de pequenas estruturas individuais, perfeitamente isoláveis, com a forma aproximada de uma pequena gota. Qual é o seu nome? Ora, se o Malaio tem uma palavra para designar especificamente o espaço que temos entre os dentes, pensei, por que nossa língua não teria um nome para essas partezinhas? Na minha casa, chamavam ora de baguinhos, ora de gruminhos, mas eu tinha uma vaga lembrança de já ter ouvido uma palavra diferente. Como o Sua Língua estreava na internet, resolvi apelar para a memória dos leitores solidários: “Que nome vocês dão para aquelas gotinhas que recheiam os gomos da laranja ou da bergamota?”.

Não foram poucos os que responderam ao apelo; infelizmente, porém, como eu não tinha deixado bem claro o espírito da pesquisa, muitos compareceram com a informação correta, científica: trata-se do alvéolo dos cítricos, que constitui (outra informação) um “exemplo de célula que pode ser vista a olho nu”. Voltei a perguntar, desta vez esclarecendo que eu estava tentando recuperar o nome caseiro, já que ninguém ousaria avisar ao avô, por exemplo, que ele estava com um alvéolo de laranja preso no bigode. Pronto! Desta vez a tarrafa trouxe bom peixe: um leitor de Minas informou que a mãe, “que adorava abrir os gomos das laranjas, principalmente da laranja-lima, para saborear aquelas pequenas gotas cítricas”, chamava-as de garrafinhas. Vários confirmaram o emprego deste termo, principalmente no interior de São Paulo, sendo que um deles, escondido atrás do significativo pseudônimo de “Delfos”, fez uma indicação preciosa: “Procure no Monteiro Lobato”. Não deu outra: Lobato usa o nome garrafinha com absoluta familiaridade em seus livros Viagem ao Céu (“casulos que guardam as garrafinhas de caldo” — isto é, gomos”) e A Chave do Tamanho (“Desfizeram um gomo e levaram para o bar do parque as garrafinhas de caldo”). Finalmente, um professor do Paraná veio coroar a enquete com um belo exemplo de Pedro Nava: “A casca separava-se de uma vez e as garrafinhas se debulhavam logo que a faca afiada abria o gomo de fora a fora”. Estava encerrada a questão. Estava? Não mesmo: meses depois, um leitor de Cachoeira do Sul escreveu para dizer que, nos anos 60, essas gotinhas eram chamadas de melindres, “termo utilizado largamente”… — e lá se foram minhas certezas, inclusive quanto aos dedos do pé.

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