Afinal, conseguiremos um dia grafar corretamente o nome do presidente perpétuo da Líbia? Kadafi, Gadaffi, Cadafe? O Doutor explica.
Nos últimos dias, a imprensa brasileira anda batendo cabeça sobre a forma correta de grafar o nome do ditador da Líbia. É Kadhafi, Gadhafi, Qaddafi, Gaddafi, Kaddafi ou Kadafi? Por mais estranho que pareça, prezado leitor, todas elas podem ser usadas, e mais algumas outras que não foram mencionadas. Essa incômoda abundância de variações ortográficas é praticamente inevitável sempre que quisermos transpor para o alfabeto românico (este que estou usando) um nome próprio proveniente de qualquer idioma que utilize um alfabeto diferente, como o hebraico, o grego, o árabe, o chinês, o cirílico (usado pelos russos, por exemplo), para citar apenas os que estão mais próximos de nós, culturalmente. Esse processo, chamado de transliteração, consiste na tentativa de representar o som original do nome usando apenas as letras do nosso próprio alfabeto. Como se pode imaginar, o resultado nunca será plenamente satisfatório, pois é impossível representar fonemas que nossa língua desconhece com um sistema gráfico que foi desenvolvido para atender às peculiaridades do Português.
Às vezes, parece que soltaram todos os demônios da tipografia. Lembram do autor do Arquipélago Gulag? Já encontrei Soljenitsin (com e sem acento), Solzhenitsyn, Soljenitzin, Soljenittsin, Soljenítsyn, Soljenitsyne — e ninguém pode dizer que uma é mais “fiel” do que a outra. É por isso que há tantas propostas para o nome de Kadafi (escolhi esta porque achei mais fácil de ler, mas talvez pudesse melhorá-la para Kadáfi; já Cadáfi ou Cadafe, mais fáceis ainda, não me agradam porque, sem o “K“, o nome me parece um tanto descaracterizado — e por aí segue a discussão, indefinidamente).
Não há nada que se possa alegar para definir uma forma como “correta” e desautorizar as demais variantes — nem mesmo, se isso fosse possível, a consulta à certidão de nascimento do distinto, já que ali o nome dele virá grafado em caracteres árabes. E se existir uma forma “oficial” de transliteração deste nome, adotada pelos órgãos do próprio governo líbio nos documentos destinados a circular no Ocidente? Nem assim, caro leitor, porque ninguém pode impor aos outros países a sua escolha ortográfica — no máximo, sugerir, como anda fazendo a China, que tenta convencer o mundo a grafar Xangai como Shanghai (veja detalhes aqui).
A preferência das agências internacionais de notícias por uma ou outra forma também não conta, pois elas obedecem aos hábitos ortográficos de sua língua de origem e seguem, exatamente por isso, rumos próprios e diferentes. Este é um daqueles momentos em que os editores ou chefes de redação precisam deixar de lado sua proverbial vocação democrática e anunciar, com voz firme, qual foi a forma escolhida. E fim de papo.