Prezado Prof. Moreno: existe algum uso específico para AONDE e ONDE?
Diego R. C. — Canoas (RS)
Meu caro Diego: como meu coração balança entre duas respostas quase antagônicas, vou apresentar-te ambas, esclarecendo qual o alcance de uma e de outra.
(1 ) QUANDO FALA A ETIQUETA — Sim, existe uso específico para os dois termos. Aonde é a soma de dois vocábulos, a preposição A + o advérbio ONDE. Ora, a presença da preposição restringe o emprego de aonde àqueles verbos de movimento que naturalmente exigem essa preposição: dirigir-se A, ir A, chegar A, etc. “Aonde te diriges? Aonde vais? Aonde chegou a violência urbana”. Usar aonde com verbos que não exijam o A” é considerado erro de regência. Nas seguintes frases, o aonde está errado, e deveria ser substituído pela forma simples onde: “*Aonde está minha camisa?”; “*Aonde ficou o cachorro?”. “Encontrei a Fulana. É? *Aonde?”. Por outro lado, nada impede que utilizes onde como forma genérica, válida mesmo nos casos em que se pode usar aonde: “Onde foste ontem?”.
(2) QUANDO FALA A CIÊNCIA — Não, não existe diferença no uso desses vocábulos. Nossos escritores clássicos, em que nossa gramática tradicional baseia a maior parte das regras que formula, usam indiferentemente onde e aonde. No séc. XVI, Camões encabeça a lista, ao escrever, nos Lusíadas:
Dali pera Mombaça logo parte,
Aonde as naus estavam temerosas. (Canto II)
Viram todos o rosto aonde havia
A causa principal do reboliço:
Eis entra um cavaleiro, que trazia
Armas, cavalo, ao bélico serviço; (Canto VI)
No séc. XVI, é Vieira quem vem trazer sua contribuição:
“Não navegaram só o mar Índico ou Eritreu, que é um seio ou braço do Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito”
“Aqui, Senhor! Pois aonde estou eu? Não estou metido em uma cova? Não estou retirado do Mundo?”
Queres exemplos do séc. XVIII? Nossos poetas do Arcadismo fornecem quantos quiseres. Tomás Antônio Gonzaga, na Lira V da Marília de Dirceu, escreve a mimosa estrofe abaixo:
Acaso são estes
Os sítios formosos
Aonde passava
Os anos gostosos?
São estes os prados,
Aonde brincava
Enquanto passava
O gordo rebanho,
Que Alceu me deixou?
São estes os sítios?
Seu infortunado companheiro de Inconfidência, Cláudio Manuel da Costa, vai mais longe: com aquela sensibilidade especial que os verdadeiros poetas têm para a língua, acabou fornecendo um notável exemplo em que a alternância de onde e aonde sugere que a escolha entre as duas formas obedece, na verdade, a um padrão sonoro (e não sintático). Um dos sonetos à sua amada Nise começa assim:
Nise? Nise? Onde estás? Aonde espera
Achar-te uma alma que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar-te desespera!
E termina com o seguinte terceto:
Nem ao menos o eco me responde!
Ah! como é certa a minha desventura!
Nise? Nise? Onde estás? Aonde? Aonde?
No século XIX — para ficar nos clássicos —, Garrett, Eça de Queirós, Castro Alves, Álvares de Azevedo usam aonde nas construções em que os gramáticos prescritivistas hoje recomendam onde. Machado de Assis, é verdade, já parece observar a atual distinção, embora se encontre, aqui e ali, a mesma prática de seus antecessores:
Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava.
Mas ao passar pela Rua do Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera morar ali; mas aonde?
Caldas Aulete declara, muito simplesmente, que “os clássicos e o povo não distinguem ONDE de AONDE”. Mestre Aurélio abre uma extensa explicação no verbete aonde, concluindo que os melhores autores, dos mais antigos aos mais modernos, não fazem distinção entre as duas formas. Como eram bons dicionaristas, não podiam negar a autoridade de todos aqueles escritores que sempre usaram como exemplo.
(3) E NÓS, COMO FICAMOS? — Olha, Diego, é inegável que os autores prescritivistas estão defendendo a existência um padrão onde não havia nenhum; essa distinção rigorosa entre onde e aonde é coisa recente, de cinqüenta anos para cá (para uma língua humana, que vive milênios, isso não passa de um quarto de hora). Só o tempo vai dizer se ela está motivada por uma necessidade de criar uma distinção realmente útil ou se ela nasce daquela sanha repressiva que caracteriza muita regrinha tola e sem ciência que anda por aí. O diabo, Diego, é o que fazer enquanto as coisas não ficam bem definidas; o conselho que te dou é o mesmo que já dei em situações similares: segue a posição (1), que vai deixar as tuas frases vestidinhas de acordo com a norma gramatical da moda, mas respeita a posição (2), que descreve o que realmente acontece. Sabes como é: uma coisa é como as pessoas se vestem, outra é como elas deveriam vestir. Não acreditas em convenções? Então, vai a um casamento vestido do jeito que preferires. Agora, tens uma certa preocupação com a opinião dos outros? Então é bom botar uma gravatinha (e ficar invejando o primo que foi de jeans e camisa pólo). Assim é com a linguagem. Escolhe, e aguenta. Abraço. Prof. Moreno
P.S.: Queres saber o que eu faço? Não uso nunca o aonde.
Depois do Acordo: cinqüenta > cinquenta
pólo > polo
agüenta > aguenta