Ouvidos e orelhas


No mundo das palavras, certas distinções que o vocabulário científico faz questão de manter muitas vezes não valem um prego aqui embaixo, na planície em que vivemos — e vice-versa.


Uma leitora que presumo muito jovem  — o e-mail veio todo enfeitado de carinhas amarelas que piscam o olho freneticamente para mim — escreve para saber se “algo” que ela ouviu de “certa” pessoa “está valendo”. O estilo é peculiar, a precisão é incomparável: “Professor: ouvido e orelha. Uma pessoa muito sábia disse que uma dessas palavras havia sido extinta de nosso idioma; a pessoa, no caso, não lembrava exatamente qual das duas. Procurei muito no Google e não achei nada sobre o fato — se é que é fato — o senhor me entende?”.

Entendo, sim, e muito bem. “Uma pessoa muito sábia”? Posso imaginar! Deve ser realmente muito sabida uma criatura que faz tão absurda afirmativa — uma palavra que se extingue, vejam só! — e que, para remate da ópera, esquece de qual dos dois termos está falando. Palpiteiro e, ainda por cima, desmemoriado? Vade retro! Mas vejo que a tua intuição, prezada leitora, levantou uma peninha de desconfiança providencial, que te levou ao Google e, finalmente, a esta coluna. Para começar, não existem palavras extinguíveis; depois que elas nascem, nada as faz morrer, e o máximo que pode acontecer com elas é entrar em hibernação. Vamos continuar a usá-las — tanto orelha quanto ouvido — enquanto nosso idioma for falado em nosso planeta.

Outra coisa é o emprego desses vocábulos na linguagem técnica ou científica. O fenômeno ocorre em todas as áreas profissionais, que precisam definir — para os profissionais que fazem parte daquele ramo — o significado que deve ser atribuído a cada termo empregado. No mundo jurídico, por exemplo, roubo e furto são coisas distintas porque o primeiro pressupõe a presença da vítima, que é intimidada ou forçada a entregar o bem, enquanto o segundo é executado furtivamente pelo ladrão (apesar de lugar comum, confesso que ainda acho certa graça no eufemismo “amigo do alheio”), que vai praticar o seu crime sem que a vítima tome conhecimento. Para mim e para ti, para o mundo real, no entanto, essa distinção não vale um prego; se levaram meu carro — seja durante minha ausência, seja com ameaça ou violência contra mim, vou dizer para todo o mundo que meu carro foi roubado.

Os médicos, por sua vez, seguem, em suas comunicações, a Nomina Anatomica (é Latim, e por isso não leva acento; a pronúncia é /nômina anatômica), lista periodicamente revisada de todos os nomes relativos ao corpo humano — músculos, órgãos, tendões, ossos e tudo o mais que compõe nossa perecível carcaça. Atualmente esta publicação começa a ser substituída pela Terminologia Anatomica (também Latim, também sem acento; há os que se opõem a esta troca de nome, mas isso é assunto interno que cabe às academias médicas decidir), e ali — ao menos no Brasil — há uma tendência de substituir o termo ouvido por orelha, passando o antigo “ouvido interno”, por exemplo,  a ser chamado de “orelha interna”. Posso imaginar o espanto com que um leigo há de ouvir essa expressão… Como podes ver, a Medicina não extinguiu o termo ouvido, o que seria impossível, mas apenas passou a recomendar (repito: no Brasil, mas não em Portugal) que se adotasse preferencialmente orelha.

Não me interessa saber por que fizeram isso, pois devem ter lá razões técnicas suficientes, mas asseguro-te que essa alteração em nada vai influir em nossas vidas, prezada leitora. Eu e tu ainda continuaremos a distinguir uma “dor no ouvido” de uma “dor na orelha”; se alguém vier nos fazer uma confidência, vamos dizer “sou todo ouvidos” (e nunca “sou todo orelhas”); quem não se importar com o que os outros dizem continuará a fazer “ouvidos de mercador” (e não “orelhas de mercador”); se meu filho tiver dom para a música, vou afirmar que ele tem “um bom ouvido” (e não “uma boa orelha”) — e assim por diante.

Isso é exatamente o que acontece com os vocábulos ave e pássaro. Para mim, o condor é um grande pássaro que vive nas alturas geladas dos Andes, gigantesco como o pássaroroca das 1001 Noites; para os biólogos, contudo, o condor pode ser uma ave, mas não é pássaro coisa nenhuma — assim como também não o são o papagaio, a garça, o tucano, o beija-flor, a ema, o gavião e a rolinha. Para mim e para os leigos, pássaro é o que voa; se for pequeno, é passarinho. Na linguagem técnica do Português, todo pássaro é ave, mas nem toda a ave é pássaro diferente do Francês ou do Inglês, em que oiseau e bird, respectivamente, se aplicam a qualquer espécie de vertebrado plumado.

[Coluna O PRAZER DAS PALAVRAS – ZH de 27/8/2011]