Quando se trata de determinar o gênero das visitantes francesas, tudo pode acontecer
Luís Carlos W., de Guarulhos (SP), comparece com uma novidade: “Vi um lançamento no jornal que me deixou em dúvida, professor. Como já ocorre com bicicletas, em breve vamos dispor também de patinetes para alugar. O problema é que a reportagem fala todo o tempo em patinetes compartilhadas e patinetes elétricas, e eu, que já tenho netos, passei toda a minha vida usando patinete como masculino. Minha filha tem um dicionário que diz que é feminino mesmo, mas eu não me conformo. Falei errado todo esse tempo? E meus amigos também? Isso é coisa do novo Acordo Ortográfico?”.
Começo respondendo à tua última pergunta: a resposta é não. O Acordo, mesmo que tenha seus defeitos (e não são poucos, como cansei de expor nesta coluna), não trata disso. Ele regula apenas a maneira de escrever as palavras, ou seja, o uso das letras e dos sinais de que se utiliza nosso sistema ortográfico.
Agora, vamos à tua dúvida central: patinete é masculino ou feminino? Que o termo vem do Francês patinette, ninguém discute. Nas margens do Sena, é um substantivo feminino. E aqui? Em que porta do banheiro ele vai entrar – “Eles” ou “Elas”? “Damas” ou “Cavalheiros”? Ou, como vi num desses cafés de estrada, na porta do “Adão” ou na da “Eva”? (este maniqueísmo, considerado conservador para alguns, corresponde a um mundo em que os banheiros eram distribuídos por sexo, não por gênero).
Ora, como sabes, atribuímos um gênero a todos os nossos substantivos. Os que correspondem a seres sexuados (leão, professor, mestre) geralmente apresentam uma forma masculina e uma feminina; nesses casos, o gênero combina biologicamente com o sexo. O gênero dos demais substantivos, contudo, é arbitrário: eles se distribuem entre masculinos e femininos segundo critérios imponderáveis. Como apontou Jorge Luiz Borges, nada explica − nem o significado, nem o tamanho − por que espada e alfinete têm o gênero que têm.
No caso de palavras importadas, a hesitação é praticamente inevitável, já que nada pode nos dizer, de antemão, se o vocábulo vai ser masculino ou feminino quando chegar aqui. Ao ingressar em nosso idioma, qualquer vocábulo imigrante deverá ser classificado mentalmente pelo falante num dos dois gêneros que o Português reconhece, sem garantia alguma de que vá coincidir com o gênero que tinha no idioma de origem. Há casos clássicos de palavras que mudaram de gênero na travessia do Atlântico: por exemplo la cocarde virou o cocar, la purée virou o purê (ou, na linguagem das crianças, o pirê) e la enveloppe virou o envelope.
Quanto às visitantes francesas terminadas em -ette (que lá são feminininas), os brasileiros (incluindo os vetustos gramáticos e os intrépidos lexicógrafos) se dividem − e aqui tudo pode acontecer. Essas autoridades nos concedem, por exemplo, o direito de escolher o gênero que quisermos para omelete. De minha parte, prefiro considerar o vocábulo como feminino; não foi por acaso que a variante que se formou (e que todos os dicionários registram) é omeleta. Não consigo entender, no entanto, por que não estendem a mesma liberalidade a patinete, a que atribuem, sem perdão, o gênero feminino − quando, na pesquisa implacável do Google, o masculino é a preferência de cinco de cada seis usuários.
Vai terminar acontecendo o mesmo que aconteceu com croquete, que (nada mais moderno!) está trocando de gênero. Inicialmente era apontado como feminino, mas o uso privilegiou esmagadoramente o masculino − aliás, com o apoio da famosa geração do Pasquim, que usava “agasalhar um croquete” como sinônimo de “entubar uma brachola” ou “enfornar um robalo”, se bem me entendem.