Comparada ao Chinês ou ao Hebraico, nossa língua é uma jovem senhora de 900 anos, mas já tem seus hábitos e suas manias. Uma delas é impor o seu próprio sistema ortográfico aos vocábulos estrangeiros que aparecem por aqui — medida das mais saudáveis, como veremos.
Na minha caixa de correspondência (não a virtual, mas a verdadeira, daquelas que têm portinha e tudo), apareceu uma folha de papel dobrada contendo uma pergunta irritada, quase uma reclamação: “Ô, Moreno, que aporrinhação é essa agora? Abro o jornal e só vejo gente discutindo se a pedra fumada é de crack ou de craque! Isso é coisa do Novo Acordo? Para mim tem o dedo desses carinhas que escondem o rosto nas manifestações! Contestam tudo! E daí? Escrito de um jeito ou de outro, esses viciados vão acabar é morrendo na sarjeta…”. Não tinha assinatura, mas o fato de não estar num envelope me faz supor que se trate de algum morador deste prédio — alguém que reúne algum interesse pela nossa língua a uma rabugenta intolerância com seus semelhantes…
A verdade, anônimo vizinho, é que ambas as formas podem ser usadas. Antes de entrar em detalhes, vamos a algumas verdades básicas: dissipada toda aquela fumaceira que a discussão sobre estrangeirismos levantou, o bom senso deixou em pé um princípio com que todos parecem concordar: só devemos buscar uma palavra em outro idioma se ela não estiver à nossa disposição no Português. É uma importação estratégica: se houver similar nacional, não tem sentido algum deixar a forma vernácula mofando na gaveta para trocá-la pela forma estrangeira — a não ser, é claro, por vaidade, futilidade ou simples semostração.
Ora, ao contrário do que muitos pensam, dos vocábulos estrangeiros que andam por aí pouquíssimos podem ser classificados como desnecessários. Acredita no que digo: palavra supérflua não dura muito. Antes da 1ª Grande Guerra, os elegantes brasileiros usavam palavras como adresse (“endereço”), étagères (“prateleiras”), flâner (“passear”); robe de chambre (“roupão”), rendez-vous (“local de encontro”), réclame (“anúncio”), chalet (“casa rústica”), début (“estreia”), enveloppe (“sobrecarta”), toilette (“traje; quarto de vestir”). O que aconteceu com elas, quando submetidas à implacável peneira do tempo? Agora, no início do séc. 21, vemos que várias delas sumiram, enquanto outras — como toalete, envelope e chalé — continuam por aí, muito pimponas. O chambre já não tem a popularidade de antanho, mas respira. Randevu está nas últimas, rebaixado ao último nível moral e social. Début continua sendo usado, mas será eternamente uma estrangeira, tanto na escrita quanto na fala (não é para menos: sua pronúncia exige o temível “U” com biquinho, que pouca gente consegue reproduzir); em compensação, terminou nos dando debutar, um verbo de razoável utilidade, pelo qual lhe somos gratos. Quem sabe como elas estarão no início do séc. 22?
Faço questão de frisar, indignado leitor, que muitas vezes a caça aos vocábulos estrangeiros é motivada por falta de informação (ou cultura) do caçador, que pensa, erroneamente, ter encontrado um sinônimo idêntico no Português. Não faz muito um jornalista vociferava, no rádio: “Parem com essa mania de usar nome importado para fingir que a coisa é fina! Mas quando se ouviu falar em iogurte? Parem com isso! Iogurte é a nossa velha coalhada!” — e dê-lhe ponto de exclamação! Confesso que fiquei impressionado com a veemência de seu discurso; no entanto, como sempre desconfio daquilo que vem gritado, seja na fala ou na escrita, fui consultar um queijeiro amigo, que me aconselhou a não levar a sério o jornalista, já que os dois — o iogurte e a coalhada — são tão parecidos quanto um porco e uma ovelha…
Portanto, quando encontramos uma palavra realmente intraduzível, devemos convidá-la a morar entre nós, deixando assim nosso léxico mais rico. Ao recebê-la, podemos tratá-la de duas maneiras: a mais comum — e mais desejável — consiste em limpá-la das peculiaridades ortográficas da língua de que proveio e adaptá-la ao nosso próprio sistema, mantendo o máximo possível de sua pronúncia original. Foi o que aconteceu com chalé e randevu, nos exemplos acima, ou com nhoque (gnocchi), blecaute (blackout) ou saite (site). Se esta hipótese for inviável (o produto da adaptação pode ficar tão esquisito que iniba sua adoção pelos usuários), ela então entrará na forma com que nasceu, escrita em grifo ou entre aspas: marketing, pizza, software, freezer. Na linguagem esportiva, o inglês crack, significando o jogador de exceção, há muito foi nacionalizado para craque; quando a mesma palavra passou a designar, no Inglês, a nova droga mortífera, é natural que se abrisse aqui também a possibilidade de designá-la por sua versão aportuguesada (o dicionário Aulete já registra esta variante). As duas formas agora vão disputar nossa preferência. No momento, dá crack de vareio; daqui a cem anos, escrevo outra coluna sobre o assunto.