Em plena 57ª Feira do Livro de Porto Alegre, ofereço aos meus leitores este popurri* de questões de linguagem (* do Fr. pot-pourri, “mistura de elementos heterogêneos; miscelânea”).
1 — GRAFIA FONÉTICA — Um leitor que se assina Usuário da Silva (este comovente pseudônimo me trouxe saudades daqueles personagens da minha infância que portavam nomes ingênuos como Concordino ou Sujismundo…) pergunta se não seria mais lógico fazer uma reforma ortográfica que tornasse fonética a nossa maneira de escrever. “Por que ninguém pensou nisso?”, conclui ele, sem ironia — e é por isso, sem ironia, que vou responder: simplesmente porque não seria possível. Isso explica, aliás, por que nunca foi tentado em qualquer lugar civilizado que valha a pena mencionar. A inteligência dos sistemas ortográficos existentes no mundo reside exatamente nisso: eles permitem escrever de uma forma única aquilo que os falantes podem pronunciar de várias maneiras diferentes. Escrevemos dois, mas o carioca diz /doix/, o gaúcho diz /dois/; escrevemos medicina, mas o pernambucano diz /médicina/, enquanto nós dizemos /mêdicina/; escrevemos mas, e dizem /más/, /mais/ ou /mãs/. Um sistema fonético seria baseado na fala de que região? E as outras? E as diferenças individuais de pronúncia, que são bem marcadas mesmo dentro de uma mesma área geográfica? Creia, meu caro Usuário: nosso sistema é o melhor possível para desempenhar esta incrível tarefa de dar uma forma razoável, na escrita, à soma infinita de todas as pronúncias.
2 — GRAVIDEZES — Outro leitor vem deplorar certos plurais que, a seu ver, são “angustiantes”. Assistindo a uma palestra sobre gestação em adolescentes, estremeceu ao ouvir falar em gravidezes; numa cerimônia de produtores rurais, sentiu-se agredido com a forma arrozes; finalmente, fugiu de uma bucólica produtora de mel quando ela comentou que o Piauí tem os melhores méis do mundo. “Sei que são plurais possíveis, mas são um insulto ao bom gosto!”. Ora, prezado leitor, bom ou mau gosto são critérios muito vagos. Gravidezes, gizes, arrozes, méis, etc. vêm sendo usados há séculos (não é figura de linguagem: são séculos, mesmo), mas em contextos que não são muito frequentes no nosso quotidiano. Tenho certeza de que um médico ou uma parteira não estranham gravidezes (até porque não existe outra maneira de dizer: “A paciente, depois de tantas …..). O arroz, o mel, a soja, o trigo são nomes não-contáveis (mass nouns, no Inglês, lembra?) e, por isso, ficam sempre no singular — na nossa linguagem usual. Quando me refiro, no entanto, a várias espécies, é muito comum pluralizá-los: “o calor da brasa carameliza os açúcares da carne”, “o arbóreo não está entre os arrozes produzidos no Brasil”, e por aí vai a valsa.
3 — ÓCIOS DO OFÍCIO? — Outro leitor implica com a expressão ossos do ofício. O correto não seria ócios? Não, meu caro, é osso mesmo — a parte ruim, a parte dura, que qualquer atividade pode encerrar; afinal, como a sabedoria popular já decretou, quem comeu a carne que roa os ossos. Antenor Nascentes, com mais cerimônia, diz que são “os percalços, as contrariedades inerentes a um mister, uma arte, uma indústria, um cargo”.
4 —PARÔNIMOS? — Letícia W., de Novo Hamburgo, tenta abrir caminho no meio do cipoal terminológico: “Gostaria de conhecer uma definição mais clara de parônimos, pois na minha cabeça eles se confundem com os homófonos e os homógrafos”. Pois fique sabendo, minha cara leitora, que este é um conceito que está praticamente condenado entre os especialistas, e por um motivo bem razoável: os parônimos seriam aquelas palavras “parecidas” que deixam o usuário confuso na hora de escolher a forma correta. Ora, este conceito de “parecido” é cultural (isto é, depende da cultura do falante) e, por isso mesmo, vago e amplo demais para ser científico. Para uma pessoa de pouca instrução, horta e aorta, figo e fígado são parônimos; para mim e para meus leitores, não são. Os termos tráfego e tráfico são parônimos porque as duas sílabas que vêm depois da tônica soam da mesma forma em ambos; são parônimos também eminente e iminente porque tanto o E quanto o I (letras) são pronunciados como /i/, na posição pretônica. Cessão, sessão e seção são parônimos porque são homófonos, sem ser homógrafos. Sustar e suster são parônimos porque se confundem miseravelmente durante sua conjugação (responda depressa: a qual dos dois verbos pertence sustinha? E sustava? E susteve? E sustou?). Intimorato (destemido) e intemerato (puro, íntegro) são parônimos porque a cara dum é o focinho do outro; etc. Como podes ver, nem todos são homófonos, nem todos são homógrafos — mas, como diria um jovem de hoje, com sua precisão peculiar, é “tipo tudo parecido”.