Assim como uma suave brisa faz a brasa se transformar em labareda, assim a imprensa e a internet, nos últimos dias, tanto sopraram que levantaram uma verdadeira polêmica sobre a tradução do termo latino plaga, utilizado por Bento 16 na sua exortação Sacramentum Caritas, ao se referir ao casamento entre duas pessoas divorciadas. O Papa escreve em Latim e sabe, melhor do que ninguém, escolher as palavras que usa. O problema, dizem, foi a versão em Português: o sítio do Vaticano, que traz o documento em várias línguas, ostenta, na página dedicada ao nosso idioma, a expressão uma verdadeira praga, escrita com todas as letras. Alguns preferiram ver aqui um escorregão do tradutor do Vaticano, alegando que ele deveria ter empregado o termo chaga, o equivalente em vernáculo ao Latim plaga. Outros, no entanto, não viram equívoco algum: era praga mesmo o que o Santo Papa pretendia dizer — e disse.
Eu tinha decidido que não ia meter minha colher torta nesta questão, e por dois simples motivos: primeiro, como não sou católico, não me sinto à vontade para analisar as palavras do líder espiritual de uma religião que não professo; segundo, mesmo que fosse, não veria muita diferença entre as duas traduções possíveis, já que qualquer uma delas deixa muito claro que o Vaticano vê o casamento entre pessoas separadas como uma prática condenável na comunidade católica: entre praga ou chaga talvez haja uma diferença de gradação, mas, no fundo, tanto faz dar na cabeça como na cabeça dar. Por isso, eu pretendia passar ao largo, à espera, muito simplesmente, de que a própria Santa Sé pusesse um ponto final em tudo, esclarecendo qual era a intenção primitiva do texto papal. Ao ver, no entanto, que os intrometidos de sempre já começavam a sair de suas tocas, descascando no lombo do anônimo tradutor do Vaticano e acusando-o de ter cometido um erro primário, resolvi sair em sua defesa e demonstrar que sua confusão — se é que ocorreu — estaria plenamente justificada pela sutileza das distinções.
O problema já começa na passagem do plaga latino para o nosso idioma, pois este é justamente um dos vocábulos envolvidos na fascinante história dos dublês (do Francês doublet), também conhecidos como formas divergentes: dois vocábulos que têm a mesma origem latina (ou, mais raramente, grega), mas que entraram na língua em épocas diferentes. A forma mais antiga seguiu a evolução fonética normal, enquanto a outra é um empréstimo tardio que os escritores do Renascimento foram colher diretamente nos dicionários latinos, por sentirem que a pequena quantidade de verbos, adjetivos e substantivos abstratos que o Português oferecia era insuficiente para o que precisavam expressar. Enquanto a forma evoluída tem a marca dos séculos, a forma reconstituída é fresca como uma recém-nascida (e, por isso mesmo, muito mais parecida com a forma primitiva): selo e sigilo, por exemplo, provêm do mesmo vocábulo latino, sigillu; a evolução produziu selo, mas os eruditos reabilitaram sigilo. Hoje as duas convivem pacificamente, cada uma com seu significado e com seus derivados. Da mesma forma delgado e delicado (do Lat. delicatu), escutar e auscultar (de auscultare), coalhar e coagular (de coagulare), desenho e desígnio (de designiu), macho e másculo (de masculu), logro e lucro (de lucru), contar e computar (de computare), e muitos outros. Os vocábulos latinos iniciados pelo encontro consonantal PL trocam-no por CH no Português: de pluvia vieram chuva e pluvial; de plumbum, chumbo e plúmbeo; de plenum, cheio e pleno; de planus, chão e plano; e, como era de esperar, de plaga vieram chaga e praga. Bingo!
Para complicar ainda mais o enredo, o termo plaga, que significava “chaga, ferida aberta” no Latim clássico, adquiriu também o sentido de “flagelo” no Latim da Bíblia Vulgata! E agora? Em qual desses latins Bento 16 estava pensando, quando usou o vocábulo? E não adianta muito bisbilhotar nas versões para outras línguas: a espanhola traz plaga (“flagelo”, em vez de llaga, “ferida”), acompanhado pela inglesa, que traz scourge (“flagelo”), mas a italiana usa piaga, que tanto pode ser “ferida”, quanto “flagelo”. A francesa em nada ajuda, porque o termo escolhido — plaie — também tem os dois sentidos (“les plaies de Jésus-Christ” — as chagas de Cristo — e “les dix plaies d’Égypte” — as dez pragas do Egito). E ainda criticam quem traduziu o texto para o Português! A pessoa mais indicada para desmafagafizar esse ninho de mafagafos seria o próprio autor, mas, até agora, quem se arriscou a falar em seu nome foi o bispo Karl Josef Romer, que declarou, em entrevista ao Estadão, que “é praga mesmo, é isso que o Santo Padre quis dizer, pois ele é muito cuidadoso na escolha das palavras”. Sim, Dom Romer, Sua Santidade escolheu o Latim plaga, que significa … E lá vamos nós de novo! Tenho certeza de que o Papa, quando perceber a dúvida de interpretação suscitada pelo termo que aparece na versão portuguesa, vai tratar ele próprio de esclarecer qual a melhor tradução para o plaga latino. Afinal, além de ser um intelectual de primeira água, é uma das poucas autoridades estrangeiras capazes de pronunciar o nosso inimitável ditongo ÃO, que é, a meu ver, o grande xibolete do Português.