Prezado Doutor: peço-lhe que aplique sua valiosa e inigualável sabedoria para esclarecer uma questão jurídica que está me atormentando: RAMBO é considerado insulto?
Policarpo Quaresma
Um angustiado leitor — vou chamá-lo de Policarpo, em homenagem ao Lima Barreto — escreve de algum lugar no interior do Brasil (por motivos que logo ficarão óbvios, não vou mencionar os nomes verdadeiros), pedindo minha opinião numa desagradável pendenga em que se viu envolvido. Como não presenciei o que aconteceu, conto a partir do relato do próprio Policarpo, mas isso, como se verá, não tem influência alguma no que vou discutir:
Numa comemoração na praça da cidade, nosso leitor foi protagonista de uma daquelas lamentáveis cenas a que todos nós estamos expostos: numa abordagem policial de rotina, ele manifestou sua inconformidade com a truculência com que estava sendo tratado e acabou despertando a ira do oficial que comandava a operação, que, ao que tudo indica, é pessoa de pavio curto. A partir desse momento, passou a ser tratado de forma especialmente autoritária, sofrendo intimidações e ameaças explícitas do referido oficial. Nosso infortunado leitor, exercendo seus direitos de cidadão, entrou então no Ministério Público com uma representação contra esse “agente da ordem”, solicitando a abertura de inquérito. [Friso que, até aqui, faço o relato com base na cópia da representação submetida à Justiça, cuja cópia recebi; agora é que vem a parte em que o Doutor poderá ser de alguma utilidade]. Acontece que, no texto dessa representação, ele pede providências para que se coíba esse tipo de abuso de autoridade, evitando-se assim “o surgimento de novos Rambos, a exemplo do ocorrido na Favela Naval, na cidade de São Paulo”. Pronto: o policial sentiu-se moralmente ofendido e, como cidadão também que é, ingressou com uma ação de indenização por danos morais contra Policarpo, que, atônito, vem pedir minha ajuda: até que ponto chamar alguém de Rambo pode ferir os princípios da moral?
Meu caro Policarpo, fico honrado com a confiança que depositas no Sua Língua, mas não posso te ajudar em quase nada. Considero-me um estudioso sério de nosso bom Português, mas (1) não conheço Direito Civil ou Processual, (2) nem posso decretar de que maneira outras pessoas vão entender as palavras que eu uso. Explico: (1) só um bom advogado vai poder nos esclarecer se a utilização de uma palavra no texto de uma representação criminal, mesmo se considerada ofensiva, pode dar motivo a uma ação por danos morais. Na minha ignorância jurídica, eu pensava que isso acontecesse apenas quando há divulgação da ofensa; estás a ver que é melhor mesmo consultar o advogado. (2) Agora, o problema maior: chamar alguém de “Rambo”, “Hitler”, “Bin-Laden”, “Lampião”, “Seu Lalau” — isso fere os princípios da moral? Na vida real, tudo vai depender da ideologia de quem ouve. Se eu disser “você é uma Madonna” para dez mulheres, tenho certeza de que umas três, no mínimo, vão se sentir ofendidas. Um personagem de Nelson Rodrigues insulta um adversário chamando-o repetidas vezes de “contínuo” — e o outro se sente ofendido. Será que ele poderia entrar com uma ação por danos morais?
Deves estar percebendo, Policarpo, que a questão vai muito, muito além do nível lingüístico, e chega ao nível social e psicológico. Alguém quer saber se imbecil, idiota, cretino, corno são vocábulos insultuosos? Aí eu posso ajudar, mostrando qual o significado que esses vocábulos têm e tiveram na história de nosso idioma — isso é linguagem. Agora, chamar alguém de Bozo, comunista, neoliberal, homossexual, machista ou talibã pode ser considerado insulto? Afianço-te que o dia, o local, a hora, o clima, a altitude, tudo pode influir nessa resposta. A Justiça é quem vai decidir. Isso é tudo o que eu posso te dizer. Se estás com a razão (como sugere, aliás, a indignação que transparece no texto da tua mensagem e da representação), faço votos de que a Justiça o reconheça. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo: lingüístico> linguística