Santana ou Sant’Ana?

Os cidadãos têm o direito de escrever seu nome da maneira como consta no registro; os municípios, no entanto, como não gozam desse privilégio, devem seguir a norma ortográfica vigente.

 

Um amigo santanense que veio me visitar aproveitou — muito de leve, entre um mate e outro, assim como quem não quer nada para sondar o que eu achava da polêmica sobre o município gaúcho de Santana do Livramento. “Voltaram a discutir por lá a grafia do nome Santana“, explicou. “Sei que muita gente prefere escrever como uma coisa só, mas eu acho mais bonito com o apóstrofo entre as duas partes, como manda a tradição igual ao Paulo Sant’Ana! Bem que podiam fazer um plebiscito e decidir isso de uma vez por todas”, concluiu, passando a cuia e a palavra de volta para mim. Entendi o recado, e aqui vai minha resposta, a ele e aos vários amigos que tenho em Livramento.

Em primeiro lugar, confesso que a dieta maciça de autores do Romantismo que a escola costumava servir acabou me tornando um nostálgico admirador do apóstrofo. Alencar intitulou um de seus mais adocicados romances de Sonhos d’Ouro elegante, delicado, sugestivo; Sonhos de Ouro, ao contrário, parece mais adequado para um daqueles paradouros de Santo Antônio da Patrulha em que, nos anos 60, a caminho das praias do Atlântico, a família gaúcha renovava suas forças com sonhos fritos e café preto. Por isso, se fosse questão de gosto, eu não hesitaria em escolher Sant’Ana.

Friso: se fosse questão de gosto… mas não é. Em casos como este, não importa a minha preferência ou o meu senso estético assim como também não importa, como alguns tentam alegar, que assim está nos documentos da fundação da cidade. Todo cidadão tem o direito de portar o nome da maneira como foi registrado, é verdade; muita gente não sabe, porém, que esta regra não vale para os nomes geográficos. A grafia do nome de um município está submetida às regras ortográficas vigentes, independentemente da forma como constava nas atas de fundação. Este princípio é fundamental para um país que, como o nosso, já tem municípios com mais de 450 anos: seria quase impossível administrar todos esses nomes (o Brasil já anda lá pelos seis mil, atualmente) se cada um conservasse a grafia original, muitas vezes atribuída em épocas em que não existia uma ortografia oficial ou em que vigiam outras normas que não as atuais. Pode-se imaginar o caos que se instauraria nas placas dos automóveis, na sinalização das estradas, nos documentos públicos, nos livros didáticos e em todas as outras situações em que precisamos escrever o nome do município!

Não sei, por exemplo, como consta no registro inicial da cidade, mas sei que durante muito tempo Triumpho se escreveu assim, com ph. Com o Acordo de 1943, passou automaticamente a ser grafado Triunfo e pronto. Trammandahy, Trammanday ou Tramandahy? Não importa; na ortografia atual, é Tramandaí. A regra dos acentos diferenciais, no Acordo de 1943, deu um chapeuzinho (circunflexo) a Porto Alegre, que passou a Pôrto Alegre assim permanecendo até 1971, quando uma pequena reforma eliminou o referido acento e voltamos a escrever Porto Alegre. Se amanhã decidirem que alegre passará a ter acento no “E” (já não duvido de nada…), lá vamos nós escrever Porto Alégre e assim por diante. É assim que funciona (e deve funcionar).

Ora, sendo o Brasil um país historicamente católico, Santana do Livramento, embora date do séc. 19, é apenas um dos vários municípios que traz Santana no nome. Numa rápida busca no IBGE encontrei mais de quinze Santanas: Santana de Parnaíba (SP) o mais antigo, fundado no séc. XVII , Santana do Matos (RN), Santana do Cariri (CE), Santana da Boa Vista (RS), Santana do Acaraú (CE), Santana da Ponte Pensa (SP), Santana da Vargem (MG), etc. além de Barra de Santana (PB), Campo de Santana (PB), Capela de Santana (RS), Feira de Santana (BA), Riacho de Santana (BA), Santana (AP), Santana (BA) todos grafados da mesma maneira, sem apóstrofo.

Aqui podemos avaliar o quão sábio é o princípio de submeter esses nomes geográficos ao sistema ortográfico vigente: se cada município resolvesse defender a grafia que recebeu no seu batismo, teríamos um desfile de variantes que incluiria “Sant’Ana”, “Sant’Anna”, “Santanna”, “Santana”, “Sant’ana” e sabe-se lá quantas outras mais. É exatamente por isso que a grafia desses nomes não está submetida à vontade ou à preferência de seus habitantes, ou dos prefeitos e vereadores. Podemos fazer um plebiscito para trocar o nome, mas não para contrariar a norma ortográfica. É perfeitamente aceitável que os habitantes de Embu, em São Paulo, votem para decidir se vão ou não trocar o nome para Embu das Artes mas seria impensável fazê-lo para mudar sua grafia para *Embú (com acento). A lei assegura aos santanenses o direito de definir o nome do município, trocando-o, se assim decidirem, por Santana, Livramento do Sul, Palomas ou qualquer outro mas não sua grafia.