Professor Moreno: com desalento, percebo que o descuido com a nossa língua chegou ao Departamento de Esportes do Portal Terra. A “chamada” para uma notícia de hoje sobre as corridas de Formula I é “Montoya bate forte e fica soterrado por pneus”. Vou ao Aurélio e lá encontro: soterrado — “Coberto de terra; metido debaixo da terra”. Trata-se de erro consagrado?
Ruy Cyrillo
Não, meu caro Ruy, não se trata de erro, nem de descuido com o nosso idioma. Ao contrário: este é mais um exemplo da limitação natural dos dicionários de um só volume, como é o caso do Aurélio e do Houaiss. Eles não podem registrar todos os vocábulos novos, nem indicar todos os significados ou usos possíveis para os vocábulos tradicionais. Em vários artigos deste sítio, já frisei que as palavras não significam apenas o que elas significavam na sua origem. A passagem do tempo faz bem a elas, assim como aos bons vinhos tintos; dotadas de uma flexibilidade bem maior do que se pensa, elas vão aumentando sua abrangência original para englobar as infinitas situações de nossa vida. Como já expliquei em Atravessando o Canal da Manga, emboscada era um ataque de surpresa levado a efeito num bosque, e o alpinismo era praticado nas montanhas que formam os Alpes. Hoje pode haver emboscadas no deserto, nos gelos do Ártico e até nas profundezas do oceano, a centenas de quilômetros do bosque mais próximo. Os montanhistas que escalam o Everest ou o Aconcágua têm todo o direito de dizer que praticam alpinismo; como vês, não foi necessário criar um novo vocábulo para os Andes e outro para o Himalaia.
Da mesma forma, soterrado ultrapassou, há muito tempo, o sentido estrito de “coberto de terra”, que está bem visível no seu radical; alguém pode ser soterrado pela neve ou por escombros; vários operários que trabalham em silos já foram soterrados por sorgo, por trigo, por soja ou por arroz (na Suécia, um homem morreu soterrado por ervilhas); em Manaus, um estudante foi tragicamente soterrado pelo lixo de um aterro clandestino, enquanto na Espanha, um homem morreu soterrado por presuntos!
Nota que ainda temos o emprego metafórico da palavra, que nos permite dizer que o homem moderno vive soterrado por propagandas consumistas, por contas a pagar, pelas montanhas de documentos que a burocracia exige. No Japão, país rico e honesto, um ministro corrupto, ao sair do tribunal, foi soterrado por uma chuva de ienes que populares indignados jogaram sobre ele. Por que Montoya não poderia ficar soterrado por pneus?
Na verdade, Ruy, está acontecendo com soterrar o que há muito aconteceu com enterrar, outro cognato de terra, que admite, no entanto, outros usos. Machado de Assis, o rei do idioma, fala em enterrar as unhas no braço, na seta do ciúme que se enterrou no coração, em Iaiá Garcia que “enterrou o pé na chinelinha matinal”, em enterrar-se nos livros, enterrar-se na política, e por aí ele vai — sem que esses exemplos nos causem a menor estranheza. Ao que parece, isso também começa a ocorrer com soterrar. Abraço. Prof. Moreno