O recentíssimo carro-bomba encontrado na Times Square e o vídeo que apareceu na internet com declarações dos possíveis responsáveis trouxeram de novo à baila um problema que tinha ficado esquecido: como se deve escrever o nome do grupo islâmico que reivindica a paternidade do diabólico engenho? A grafia correta seria talibã, talebã, taliban ou taleban? A dúvida se justifica: quem acompanha os últimos acontecimentos encontra todas essas formas empregadas nos jornais, nas revistas e nos sítios de notícias mais importantes, numa dança enlouquecida de grafias alternativas. Dois leitores já escreveram, querendo saber — assim, pão, pão; queijo, queijo — qual é o correto. Para quem só quer a respostinha seca, já vou dizendo: escrevo talibã, talibãs. Para quem não se contenta com isso, vou apresentar minhas razões.
Em primeiro lugar, preciso lembrar que em nomes como esse não existe a forma correta, mas sim a mais recomendável. Isso acontece, aliás, com todos os nomes provenientes de línguas que não usam o alfabeto romano (o que aparece no teclado de nosso computador) e que precisam, portanto, ser transliterados, o que vem a ser bem diferente de traduzido. Ao traduzirmos, vamos buscar no estoque da nossa língua uma palavra que tenha um significado equivalente à palavra estrangeira. Ao fazermos a transliteração de um nome, por outro lado, tentamos reproduzir o som que ele tem na sua língua original usando o nosso próprio alfabeto — o que sempre vai produzir, é lógico um resultado meramente aproximado, pois tentamos representar fonemas que nossa língua desconhece usando um sistema gráfico elaborado para dar conta da fonologia do Português. Lembro as diferentes propostas de transliteração para Kruschev (ou Khruschev, ou Khruschov, ou Kruchev, etc.), ou para o falecido camarada Mao, que eu cresci chamando de Tse Tung, e hoje aparece como Dze Dong (ou coisa assim). Quem já leu diferentes edições de Dostoiévski (ou Dostoievsky?) está acostumado a mudanças na grafia dos nomes dos personagens.
A forma talibã também é uma transliteração e, portanto, também aproximativa; de todas as outras, contudo, é a que está mais de acordo com a tradição e a que melhor se enquadra em nossos padrões fonológicos:
(1) Por que “I“e não “E” na segunda sílaba? Embora na pronúncia local, dependendo da região, registre-se um som intermediário entre o /i/ e o /e/, nas línguas ocidentais mais importantes vem prevalecendo, como no Português, a forma grafada com “I“, e não com “E“: para o Inglês, é the Taliban; para o Francês, le taliban; para o Espanhol, nosso irmão mais próximo, el talibán.
(2) Por que o final em -ã? Há muitos nomes asiáticos terminados em /a/ seguido de consoante nasal. Enquanto o Inglês registra tudo como –an (Afghanistan, Pakistan, Jordan; Iran, Teheran, Oman, Ramadan), nós aportuguesamos essa terminação de duas maneiras diferentes: ora como –ão (Afeganistão, Paquistão, Jordão), ora (o que é mais frequente) como -ã (Irã, Teerã, Omã, Ramadã). Como Said Ali muito bem observa em seu Dificuldades da Língua Portuguesa, contudo, os terminados em –ão são casos excepcionais, diante da esmagadora preferência pelo final –ã. Por isso, entre talibão (nossa!) e talibã, a escolha é óbvia. O que nós não temos é o final –an, como o Inglês; é impossível, portanto, em nosso sistema, uma forma como *taliban.
Outro problema que ainda não apareceu por aqui, mas que já vou matando, já que estou com o porrete no ar, é o do plural. Acontece que, no dialeto persa falado pelos talibãs, o vocábulo é uma variante plural do vocábulo árabe talib, que significa “estudante; aquele que procura o conhecimento”; na verdade, “estudante da teologia islâmica” – o que espelha historicamente a origem do movimento, cujos líderes são filhos diretos das movimentações estudantis dos anos 60 (leia-se “anos sessenta”; há por aí os que defendem o indefensável “*anos sessentas”. Credo!). Por esse motivo, a maior parte da imprensa européia usa o vocábulo como se já fosse um plural (“the Taliban are“; “les taliban“; “los talibán“. Julgo, entretanto, que imitar essa prática no Português seria criar uma injustificável exceção ao paradigma (imaginem “os talibã“!) e ignorar a extraordinária capacidade que nosso idioma tem de deglutir os vocábulos estrangeiros e nacionalizá-los fonológica, ortográfica e morfologicamente. Já escrevi várias vezes sobre isso: para entrar no Português, o vocábulo estrangeiro tem de aprender a dançar miudinho, tratando de comportar-se como seus colegas nativos. Um talismã, dois talismãs; um talibã, dois talibãs.