ventosa

Aluno não aprende sozinho, ciscando como um pinto solto entre livros e apostilas. A aprendizagem sem professor é difícil, demorada e geralmente imperfeita, pois só ele é capaz de identificar os desvios e os becos sem saída em que o pensamento do aluno se perdeu.

Ao contrário do que alguns andam apregoando por aí, aluno não aprende sozinho, ciscando como um pinto solto entre livros e apostilas. A aprendizagem sem professor é difícil, demorada e geralmente imperfeita, pois só ele é capaz de identificar os desvios e os becos sem saída em que o pensamento do aluno se perdeu. Um bom professor deve ser um obsessivo leitor de sinais — as expressões do rosto, as exclamações, as perguntas, tudo vai contribuir para que ele descubra a melhor maneira de ajudar aquele que está ali, à sua frente, à espera desta ajuda. É mais ou menos o que acontece aqui quando me fazem uma pergunta: sem entender exatamente onde reside a dúvida do leitor, é impossível auxiliá-lo — mas, acreditem, isso exige paciência e muita atenção.

De uma pequenina cidade do agreste do Rio Grande do Norte — santa internet! —escreveu uma leitora para pedir notícias sobre o paradeiro de um vocábulo que sua família sempre usou mas que, como verificou com surpresa, não consta no dicionário. “Professor, cresci ouvindo meu pai dizer que a praia de Pirangi era muito ventosa, batida pelos ventos do Atlântico — mas o dicionário que consultei não registra este significado. É um sentido arcaico da palavra, ou não passa mesmo de fala de matuto?”.

É evidente que não levei a informação dela muito a sério, porque a experiência me ensinou que a trágica frase “não consta no dicionário” muitas vezes quer dizer, na verdade, “procurei num dicionariozinho escolar caindo aos pedaços — o único que temos aqui em casa — e não encontrei”. Por isso, com muito tato, tratei de aconselhar à leitora que pesquisasse num dicionário melhor — um Aurélio, um Houaiss, um Aulete —, já que não se trata de regionalismo ou palavra obsoleta, mas, bem ao contrário, de adjetivo usado correntemente, significando “com ventos fortes, com muito vento”. Meu conselho era didaticamente honesto: procura — e encontrarás!

A resposta não se fez esperar: ela costumava consultar nada mais, nada menos que o Houaiss on-line, e podia jurar que lá não havia menção alguma a esta associação com o vento, que tanto ela quanto eu atribuíamos ao vocábulo. “Só pode ser falha deles! Acho que não dá para confiar nesses dicionários da internet; digitei ventosa várias vezes e sempre deu a mesma coisa: fala de tratamento médico, de polvos, de árvores, mas nada sobre o vento”. Bingo! — só então me dei conta de qual era o verdadeiro problema que a afligia, qual era o nó que precisava ser desatado: apesar de escrever com certa desenvoltura, minha leitora não conhecia os rudimentos básicos de uma consulta ao dicionário. Coube a mim explicar-lhe que a palavra que estava procurando era um adjetivo — e que todos os adjetivos vêm sempre registrados no masculino, sobrando para os usuários a tarefa de deduzir o plural e o feminino; que encontramos bonito, mas não bonita, bonitos e bonitas; e que, portanto, se ela digitasse ventoso, finalmente apareceria o adjetivo que buscava, com o sentido de “com muito vento”, mais antigo do que a Sé de Braga. Daí as tardes ventosas, a praia ventosa de Pirangi. Como ela digitava indevidamente o feminino, abria-se o verbete ventosa, agora um substantivo, vocábulo de origem latina que designa aquilo que o polvo tem nos tentáculos e, por semelhança, aquelas campânulas de vidro que se aplicavam nas costas do paciente, consideradas pela medicina antiga como um meio eficaz para tratar diferentes problemas do organismo. Estava solucionada a questão: ela tivera a coragem de perguntar, e eu, felizmente, a coragem de explicar um detalhe que me parecia vergonhosamente óbvio, mas que, como ela mesma confidenciou depois, jamais lhe teria ocorrido espontaneamente.

Outro leitor — sintonizado, aliás, com o atual clima de Páscoa —, veio perguntar se a  expressão “entrou como Pilates no Credo” serve para crítica ou elogio, porque ouviu usarem-na a respeito de um amigo recentemente nomeado para cargo importante numa emissora estatal de televisão. Tenho de ser sincero: é uma crítica, meu caro leitor. Pôncio Pilatos (e não Pilates, que é o método de ginástica…) era o governador romano da Judeia quando Cristo foi crucificado; como seu nome é casualmente mencionado no Credo (do Latim, “creio”), uma das orações mais tradicionais da Igreja Católica, ele acabou se tornando, por isso, o símbolo do sujeito que não tem nada a ver com a situação em que se encontra — aquilo que o povo descreve como “entrar de gaiato”.

Após o Acordo: Judéia > Judeia

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